segunda-feira, 10 de julho de 2023

Quem ganha na guerra ucraniana? Marcelo Colussi / Pela Nossa América Da Cidade da Guatemala

Quem ganha na guerra ucraniana?
Marcelo Colussi / Pela Nossa América
Da Cidade da Guatemala

"Na guerra não há vencedores, falso, na guerra há vencedores claros."
Alejandro Marco del Pont

I
Quem ganha nessa guerra? Se o objetivo de Washington, usando a União Européia e a OTAN como instrumentos, era derrotar Moscou militarmente no campo de batalha, isso não foi alcançado. E nada indica que se cumprirá.

Entre 1884 e 1885 em Berlim, na Alemanha, as potências capitalistas europeias (entre as quais se destacavam basicamente a Grã-Bretanha, França, Holanda, Bélgica, Alemanha e Itália), mais a presença da Rússia, dos Estados Unidos e do Império Otomano, dividiram o continente africano continente à sua conveniência. Claro, nem um único africano participou da conferência.

Hoje, quase um século e meio depois, algo disso volta a acontecer. Hegel havia dito que "a história se repete duas vezes", ao que Marx acrescentou: "a primeira como tragédia, a segunda como comédia". Na Ucrânia isso se aplica? O país está dividido entre duas potências: uma que governa o sul e o leste, agora território russo, e as demais nas mãos virtuais das grandes capitais ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos, secundadas pela Grã-Bretanha e pela União Europeia. A coisa da "comédia", poderia ser porque o atual presidente de Kiev é um comediante de profissão?

Naquela ex-república soviética, muito está em jogo. É mais uma guerra das muitas que se travam hoje (mais de 50 em todo o mundo, onde são necessárias as armas que as grandes potências fabricam e vendem), mas tem um significado especial: não só pelo que acontece no terreno de batalha, mas pelas implicações políticas do confronto e suas consequências a médio e longo prazo. Hoje, quase um ano e meio depois do início do conflito, está mais do que claro que quem luta é a Rússia e os Estados Unidos/NATO, com a população ucraniana participando como competidores diretos - os que carregam os mortos e feridos. Como na Conferência de Berlim, os ucranianos não foram questionados sobre a guerra: eles foram simplesmente apanhados nela. O país já está dividido entre grandes potências?

“Qual é o objetivo desta guerra?” O presidente croata, Zoran Milanović, perguntou-se recentemente, respondendo em um impressionante ato de honestidade: “Derrotar uma superpotência nuclear lutando em suas fronteiras? Tal estado pode ser derrotado com armas convencionais? Os russos têm vantagem em munição, artilharia, têm números ilimitados. (...) Ocidentais que ontem eram pacifistas e pacifistas agora querem beber o sangue dos outros. É profundamente imoral o que estamos fazendo como o Ocidente coletivo." Nesse confronto, está em jogo a recomposição em escala planetária das potências dominantes: os Estados Unidos não querem que nada no mundo perca seu lugar de honra, que manteve como superpotência hegemônica durante o século XX, enquanto novas potências - Rússia e China no fundamental, com uma nova arquitetura econômica baseada nos emergentes BRICS, distanciando-se da zona-dólar- começam a desenhar uma nova multipolaridade. A Europa está a ser deixada como vagão de Washington, e a população europeia não sai do seu estupor, sendo levada a uma autoflagelação à qual, ao que parece, não consegue reagir. Durante a Guerra do Vietnã, um grande número de americanos protestou contra esse massacre; agora muito poucos europeus estão protestando contra a Ucrânia. Ao contrário, são levados -insanamente- por uma russofobia enlouquecida a uma posição tragicômica: é proibido ouvir a música de Tchaikovsky ou ler Dostoiévski... "O sono da razão produz monstros", alertou Francisco de Goya y Lucientes.

Em uma charge de humor gráfico (agora rebatizada de “memes”) que circula nas redes, uma foto de Saddam Hussein pode ser vista com a legenda: “O imperialismo deu armas para ele, depois cobrou seu preço”. O mesmo se vê numa imagem de Mohammar Khadaffi, e portanto também de Osama bin Laden, para fechar com a imagem de Zelenski, o atual presidente "democrático" da Ucrânia, com a pergunta: "A história se repetirá?" Talvez aí você possa ver a "comédia", claro a um preço muito alto.

II

Quem ganha nessa guerra? Se o objetivo de Washington, usando a União Européia e a OTAN como instrumentos, era derrotar Moscou militarmente no campo de batalha, isso não foi alcançado. E nada indica que se cumprirá. No século 19 Napoleão não podia com seus exércitos, no século 20 os nazistas não podiam, agora no século 21 o capitalismo ocidental também não parece ser capaz. A Federação Russa, herdeira do primeiro Estado operário-camponês, a URSS, apresenta-se como uma superpotência militar, guardando a possibilidade de desencadear uma guerra nuclear caso se sinta perigosamente ameaçada. A hipermilitarização da Ucrânia - que continua armada, perde seus filhos no campo de batalha e bombardeada impiedosamente pelo exército russo - parece não parar. A estratégia da Casa Branca pode ser insana, porque - buscando-a conscientemente ou não - pode acabar precipitando o Armagedom, o holocausto termonuclear final.

Com critérios não tão doentios - talvez por isso lhe deram um tiro na cabeça? - John Kennedy havia dito: "Defendendo nossos próprios interesses vitais, as potências nucleares devem evitar sobretudo aqueles confrontos que levam um adversário a escolher entre uma retirada humilhante ou nuclear guerra. Seguir esse tipo de curso na era nuclear seria apenas evidência da falência de nossa política ou de um desejo coletivo de morte para o mundo." Seguindo esse raciocínio, talvez devamos concordar com Freud quando pensava que a humanidade não conseguirá vencer a força irreprimível de uma pulsão de morte que, mais cedo ou mais tarde, nos levaria à autodestruição. A “comédia”, nesse caso, poderia ser paga por toda a humanidade. Comédia macabra, diga-se de passagem.

As capitais ocidentais, lideradas por Washington, construíram uma matriz midiática russofóbica de proporções gigantescas. A isso se soma uma infame visão de mundo centrada na defesa da suposta "liberdade" e "democracia" contra o "autoritarismo", para a ocasião representado pelo presidente Vladimir Putin, ou seu homólogo chinês Xi Jing pin, bem como qualquer personagem que desafiou a supremacia do dólar (os já citados Hussein, Gaddafi, os líderes iranianos, o líder norte-coreano Kim Jong-un, os irmãos Castro, Maduro, o falecido Chávez). A verdade é que, em termos de guerra, Moscovo está a sair por cima neste momento, e a tão esperada contra-ofensiva de Primavera realizada por Kiev, com o total apoio da OTAN, não funcionou.

Quem então ganha na guerra? Como Daniel Kersffeld diz muito claramente: “O capital vence na guerra. Usando o conflito com a Rússia, o regime de Volodimir Zelensky realiza uma ofensiva brutal contra os direitos trabalhistas dos ucranianos. Organizações sindicais de todo o mundo denunciam que o governo ucraniano pretende criar um verdadeiro laboratório neoliberal, com o menor número possível de regulamentações trabalhistas e com as melhores condições para que empresas privadas e grandes corporações façam grandes investimentos no marco da política de reconstrução do país que está sendo promovida atualmente nos países europeus e nos Estados Unidos”. Na Ucrânia, o capital vence, como sempre acontece sob o capitalismo. E em todas as guerras de grande calibre a que assistimos desde finais do século passado, com a queda do bloco soviético, a começar pela dos Bálcãs e o desmembramento da ex-Jugoslávia, repete-se o mesmo guião: o Ocidente , civilizado? Ele destrói impiedosamente um país, apropria-se dele e depois o reconstrói. Aconteceu no Iraque, na Líbia, no Afeganistão. Já está acontecendo agora na Ucrânia. A Conferência de Berlim parece ainda estar presente.

A democracia e o "progresso" que os capitais ocidentais, sempre liderados pelos Estados Unidos, impõem a países antes subjugados por "autocracias tirânicas", agora libertadas, deixam claros vencedores: "Em 2014, a Ucrânia teve de se comprometer com uma série de medidas de austeridade em em troca de um pacote de resgate de US$ 17 bilhões do FMI e um pacote de ajuda adicional de US$ 3,5 bilhões do Banco Mundial. Estas medidas incluíram a redução de pensões e salários no setor público, a reforma do abastecimento público de água e energia, a privatização dos bancos e a modificação do sistema do IVA, mas também a privatização da terra que terá lugar neste caso levantando a moratória da terra e liberando sua posse”, comenta Alejandro Marcó del Pont. É claro que os vencedores não são as populações violentadas pela guerra, nem seus governos: são os benditos e sacrossantos reconstrutores! A Rússia marcou a linha vermelha no Donbass; lá governa Moscou. No resto do país, os “democratas” ocidentais, através de um fantoche chamado Zelenski (será que a profecia do meme acima mencionado se tornará realidade?). A população ucraniana… os figurantes da comédia?

III

A II Conferência para a Recuperação da Ucrânia realizou-se recentemente em Londres (capital de um antigo império "civilizado" que continua a manter monarcas, tal como há um milénio... Civilizado?). Autoridades do governo, grandes bancos privados ocidentais, organizações de crédito como o FMI e o BM, até mesmo ONGs de “solidariedade”, todos se reuniram lá para calcular os custos de reconstrução do país eslavo destruído. Segundo a estimativa do Banco Mundial, da Comissão Europeia e das Nações Unidas, são necessários 411 mil milhões de dólares para esta tarefa. O governo ucraniano estimou que o custo total poderia exceder um trilhão de dólares. Mas quem pagaria isso? Obviamente, a população ucraniana, contra a qual está sendo feita “uma brutal ofensiva contra seus direitos trabalhistas”, como já foi dito, para favorecer quem vai cobrar a conta dessa ajuda?

Como serão cobrados? Ficando com os recursos de petróleo e gás, e com os 33 milhões de hectares agricultáveis, o "celeiro da Europa", que já estão se tornando propriedade de multinacionais ocidentais dedicadas ao agronegócio. Obviamente, na guerra alguns ganham. Populações, claro que não. Os fabricantes de armas são, sem dúvida, os primeiros a se beneficiar. E como vemos com esta nova modalidade de destruir e depois reconstruir, as grandes capitais -sobretudo os Estados Unidos- também. Manter a ideia de que o Kremlin lançou uma "operação militar especial" para defender a população de língua russa das repúblicas de Donetsk e Lugansk é, de qualquer forma, tendencioso. A operação é -impossível negar- uma guerra aberta (a Ucrânia já colocou 100.000 mortos) que serve a Moscou para mostrar sua musculatura militar e demarcar áreas de influência. O capitalismo russo, agora em expansão, também vence.

Se pudemos falar de uma nova Conferência de Berlim, é porque, nessa nova arquitetura global que se tece, a Rússia, que não é mais socialista, tem aspirações de poder econômico, político e militar, tanto quanto o Ocidente poderes capitalistas. A guerra na Ucrânia é a expressão da bofetada na mesa que o Kremlin está a dar para mostrar que não quer ser apenas uma "potência regional", como diziam na Casa Branca, mas uma potência com características globais, com uma economia em crescimento - apesar das sanções ocidentais - e com poder de fogo que equivale à possibilidade de destruição total de seu arquirrival, os Estados Unidos. A sua inegável força militar é a sua carta de apresentação, neste momento mais do que a sua economia (a China é, acima de tudo, uma afronta económica ao capitalismo ocidental, e secundariamente uma ameaça de guerra). No momento, a Rússia, nunca devemos esquecê-lo, é um país capitalista, tanto quanto os ocidentais contra os quais ela está lutando. A título de exemplo, apenas como indicador desse perfil, basta ver o que aconteceu com o grupo Wagner (que leva esse nome em homenagem ao músico preferido de Adolf Hitler. E a ideologia e a ética socialista, o que fizeram?).

Tal grupo, fundado em 2013 pelo ex-prisioneiro Yevgeny Prigozhin, agora multimilionário (preso por assalto à mão armada na década de 1980 -o socialismo, sem dúvida, não pode impedir a transgressão psicopática-), é um exército privado semelhante que também tem os Estados Unidos (chamados "contratantes") e outras potências capitalistas europeias. Este grupo militar russo, formado por mercenários e presidiários que ganham salários entre 3 e 4 mil dólares por mês, está presente em nada menos que onze países, principalmente na África, onde presta assistência e treinamento aos exércitos locais em troca de acesso a reservas de ouro e metais preciosos, muito ricas naquele continente. [Empreiteiros de guerra] “não são apenas maçãs podres: são frutos de uma árvore muito tóxica. Este sistema depende do casamento entre imunidade e impunidade. Se o governo começasse a atacar empresas mercenárias com acusações formais de crimes de guerra, assassinato ou violações de direitos humanos (e não apenas tokens), o risco que essas empresas correriam seria tremendo. (…) A guerra é um negócio e os negócios têm corrido muito bem”, explica Jeremy Scahill, com razão, quando fala das empresas americanas. Isso vale para qualquer exército mercenário. Na guerra, concebida em termos capitalistas, é claro que há vencedores!

Resumindo: capitalismo é capitalismo, independentemente de ser russo, canadense, taiwanês, americano, egípcio ou peruano. “O capital não tem pátria”, diz um pensador do século XIX supostamente superado hoje. Parece que isso, expresso há 150 anos, ainda é muito válido, não foi superado. A Ucrânia permite que ele veja com clareza sangrenta.

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