quinta-feira, 31 de agosto de 2023

África: Nossa primeira memória roubada * Oleg Yasinsky/RT

África: Nossa primeira memória roubada
Oleg Yasinsky/RT

Ontem um amigo me ligou da Espanha para me contar isso no meu último texto para a RT, onde escrevi literalmente: “[…] a Rádio Televisão Livre Thousand Hills em Ruanda, que promoveu o ódio desenfreado e o racismo contra os tutsis, que abriu as portas a um genocídio de 70% da sua população no país e que o mundo civilizado avalia rudemente com 'entre 500.000 e 1.000.000' de pessoas [...]" Caí na armadilha do sistema. Acontece que não é que os crimes horríveis cometidos não fossem verdadeiros, mas é muito pior. Explicaram-me que repetir esta narrativa sem contexto ou análise das raízes coloniais do pesadelo, e sem mencionar o principal envolvimento europeu neste caso, é como repetir o mantra sobre "a invasão russa da Ucrânia", desviando a nossa atenção do problema subjacente .

Infelizmente, o genocídio dos Tutsis pelos Hutu é um facto real e o papel na sua preparação da Rádio Thousand Hills é enorme, mas quase ninguém está disposto a lembrar o contexto da tragédia, literalmente inexistente em qualquer pesquisa no Google. ou outro semelhante. Muito menos se fala dos mais de 10 milhões de pessoas assassinadas em países vizinhos ao mesmo tempo, porque, neste caso, deveríamos também recordar outro genocídio, promovido e supervisionado pelas modernas democracias europeias no final do século XX e que, pelo número de inocentes massacrados, foi quase o dobro do Holocausto. Ou muito mais do dobro, sabemos quão relativas são as estatísticas em África.

A maravilhosa Rosa Moro, jornalista e especialista em África, diz no seu livro 'O genocídio que não pára no coração de África. Uma história de desinformação', que "mesmo as reportagens mediáticas que são verdadeiras, apresentadas sem o devido contexto, isto é, sem as relacionar com as outras partes na mesma guerra, não contribuem nem para a informação nem para a denúncia. Estas histórias sem o seu contexto real apenas contribui para alimentar o mito da selvageria dos africanos e torna difícil compreender verdadeiramente o que está a acontecer na realidade”.

Alguém escreveu 'As veias abertas da África'? Ou o livro de Rosa já é uma tentativa de olhar profundamente para o continente negro para descobrir por que ele continua a sangrar?

É incrível, mas a África no “mundo civilizado” ainda é muito pouco conhecida. Não há sequer um consenso sobre por que tal continente é chamado de “negro”.

Há quem diga isso, obviamente, pela cor da pele da maioria dos seus habitantes; outros, talvez para evitar acusações de racismo, dizem que desde a antiguidade aquelas terras eram consideradas "negras" ou "escuras" por causa de suas selvas densas e inexploradas cheias de todos os tipos de perigos, lugares que eram vistos desde a Europa como um grande negativo em o mapa.

Falando de África, não consigo deixar de pensar no documentário ‘O Pesadelo de Darwin’, uma verdadeira obra-prima do jornalismo crítico e empenhado, nestes tempos em sério perigo de extinção. Neste documentário do distante 2004 está tudo o que você precisa para entender a globalização e o neoliberalismo. A Tanzânia que vemos continua a expandir-se por todo o planeta.

Aviões que enchem de armas a África assolada pela fome e pela SIDA e, para não regressarem vazios à Europa, transportam a carne de peixe mais preciosa do mundo gourmet, enquanto os filhos dos pescadores lutam com os abutres pelos ossos em decomposição.

Um vigia de uma planta de peixes, com seu arco e flechas envenenadas, por seus dois dólares mensais, sonha em matar alguém faminto para ganhar um prêmio que é o dobro de seu salário. O protagonista da história é um peixe, a perca do Nilo, que foi introduzido no Lago Vitória graças ao engenho neoliberal para devastar os habitantes nativos das suas águas e, obviamente, a vida de todas as pessoas que devem ser “reorganizadas”. necessidades do mercado global.

O inferno do paraíso africano deve ser o autorretrato mais gráfico do sistema. Mas os meios de comunicação social conseguem desviar a nossa atenção do que é óbvio, mostrando-nos pequenos pesadelos na medida da indignação permitida pelos seus bons modos europeus e até um pouco de autocrítica para melhor temperar o nosso conformismo.

Os homens, mulheres e crianças tutsis assassinados com a indiferença do mundo não têm culpa pelo facto de este terrível massacre ter sido a única versão oficialmente permitida para filmes e declarações que nos distraíam dos outros, não menos horríveis, embora simplesmente maiores. Tal como os milhões de judeus mortos no Holocausto não são poucos, embora os milhões de vítimas soviéticas tenham sido várias vezes o dobro.

E se há algo ainda mais horrível do que isto, é a sombra negra do homem branco. Toda uma civilização baseada no saque, na selvageria e na hipocrisia como seus principais pilares para sobreviver e depois dar ao mundo aulas de moralidade e humanismo.

Se África foi o berço do homem, poderá ser hoje esse generoso ventre negro, abusado, roubado e caluniado, e dar à luz um pouco de humanismo? Sinto que sem ela seria difícil nos tornarmos o que deveríamos ser.
REVOLUÇÃO AFRICANA
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MUAMMAR KADAFI
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quarta-feira, 30 de agosto de 2023

IDENTITARISMO VERSUS NACIONALIDADE * Nelson Lellis/Roberto Dutra.Unisinos

IDENTITARISMO VERSUS NACIONALIDADE

"Uma nação perde sua potência coletiva ao colocar a história como objeto jurídico. Óbvio, entendemos que as comissões de verdade são importantes para apuração de fatos a fim de se fazer justiça aos envolvidos e para se registrar na história os relatos tal como são. O que parece ser um grande equívoco, por exemplo, é marcar com sinal de culpa os descendentes daqueles réus – transformados em verdadeiros fantasmas. Esse exercício movimenta interesses de poder, de reescrita da história e de condenação simbólica a determinados grupos da sociedade, e boa parte da esquerda comprou essa ideia", escrevem Nelson Lellis e Roberto Dutra.

Para todo crítico sério do identitarismo não é de somenos importância nem exercício inane iniciar textos como esse dizendo que consideramos e repudiamos a infeliz presença de crimes racistas, de violências de gênero, preconceitos de classe etc. Eles existem e precisam ser combatidos com o rigor da lei e com a devida conscientização/educação sobre o que significa viver civilizadamente. A objetificação de sujeitos no sistema capitalista, que continua etiquetando-os valorativamente na sociedade, é uma realidade que contribuiu para novas discussões sobre o antagonismo entre grupos e para a identificação ora real, ora ideológica, dos opressores e dos oprimidos. Estamos cientes dessa linha tênue.

Trazemos, no entanto, dois breves argumentos, já debatidos na literatura especializada, para pensar como a cidadania nacional é desafiada pela lógica da cidadania cultural alimentada pelo identitarismo. Em primeiro lugar, a questão da revisão da história e a constante oposição entre o Nós versus Eles que busca definir ad aeternum a figura do oprimido e opressor; em segundo, a ausência de um projeto comum para a Nação que impossibilita, mesmo com tantas diferenças, orquestrar a diminuição da desigualdade. Vejamos.

A historiografia vitimária em questão

Um dos argumentos mais complexos que compõem a cartilha identitária é o da historiografia vitimária. Seu fundamento é revisitar a história de uma Nação observando os grupos dominantes responsáveis por reprimir grupos periféricos. Ilan Greilsammer (1998), ao escrever sobre a história de Israel, observou que as teorias antiestablishment dos sociólogos na Nova Esquerda estadunidense das décadas de 1970-80 influenciaram fortemente os pesquisadores israelenses acerca do assunto. Reinterpretar o passado é um recurso não só político como também ideológico para se conceber narrativas que garantam maior legitimidade para determinado grupo. Nas palavras de Mathieu Bock-Côté (2019, p. 115), “a memória se torna, assim, um campo de batalha em que os dominados de ontem tiram sua desforra e fundam, na apresentação de seu percurso histórico, a legitimidade de suas reinvindicações”.

Não somente a “história de Israel”, mas outras tantas que são submetidas ao diapasão do multiculturalismo, reduzem a história nacional a uma mesma trama forçando uma imagem de Estado ideocrático; com isso, sugere-se revisitar a história coletiva trazendo, para o centro do debate, as vítimas de hoje e que se sentem ligadas simbolicamente às vítimas do passado para acusarem os grupos identificados como opressores. Forma-se, assim, uma maquete ideológica em que a memória de uma Nação vai se tornando numa memória cuja pedagogia mais relevante é perpetuar a imagem dos opressores pelo sexo, pela cor, pela classe etc., e reescrever as experiências históricas – já traumáticas – elevando a culpa como um programa de expiação. Como disse Bock-Côté (2019), para esse grupo “já não existe história instrutiva, acumulativa, mas uma história cuja soma é zero”. Nas célebres palavras de George Orwell (2009), “quem controla o passado, controla o futuro”.


“Uma nação perde sua potência coletiva ao colocar a história como objeto jurídico”, dizem os pesquisadores Nelson Lellis e Roberto Dutra.

Havendo culpa, deve-se, portanto, instaurar o arrependimento. Quem ajudou a germinar a cultura do arrependimento foram os movimentos sociais da década de 1960 – a dinâmica ideológica dos radical sixties (cf. FERRY; RENAUT, 1988). Para que estruturassem seu imaginário, era necessário construir uma narrativa histórica conduzindo cada indivíduo a um grupo de identidade, no entanto, a ideia não era, objetivamente, estabelecer um vínculo, conforme Bock-Côté observa, mas desfazê-lo. Não foi por qualquer coisa que pensadores mais conservadores, como o jornalista francês Jean Sévillia e o historiador Daniel Lefeuvre, entenderam o “historicamente correto” como uma ideologia penitencial; para Lefeuvre (2006, p. 12), “o dever da memória que eles buscam impor é o de uma memória artificial, construída para as necessidades de sua causa, e que produz, na realidade, uma perda de saber real, ao mesmo tempo em que mostra uma negação da história”.

Quanto à “culpabilização retrospectiva”, termo utilizado por Alain Renaut (2000), o sentido do humanismo foi transformado: se antes, num cenário republicano moderno, a ideia era desconsiderar as diferenças integrando a todos os perfis humanos (individuais ou coletivos), as representações de hoje contribuem para a exclusão daqueles que não correspondem a determinados padrões. A “abertura ao outro” só seria possível pelo reexame das condições morais que posicionam uns como oprimidos e outros como opressores numa senda cíclica e, por isso, sem salvação para ambos os lados.

Os conflitos de memória sob a ótica ideológica de grupos que militam na esfera pública buscam ocupar espaços de diferentes formas. Possivelmente, essa nova comunidade política apostará na reconfiguração das instituições porque são estas que mantêm os “excluídos” nessa estrutura hierárquica. Por outro lado, esses espaços não são apenas de visibilidade pública e/ou política, mas também físicas. Destruição de estátuas, obras de arte, imóveis públicos, e quaisquer outras memórias ligadas a personagens/grupos que devem – segundo essa perspectiva ideológica – ser extirpados após condenação. Responsabiliza-se a história e depois apaga-a, contudo, a consciência histórica contestada por grupos identitários e que se pretende descentrada do grupo majoritário, reintegra na sociedade do presente os criminosos (reais e imaginários) a partir de relações de gênero, de cor, de classe, que os caracterizam como tal.

Diante disso, Frantz Fanon, usado tão equivocadamente pela lógica identitarista, questionou em 1952: como demandar ao homem branco de hoje que seja responsável pelos navios negreiros do século XVII? E nessa esfera de reparação, Aimé Césaire reconhece que uma coisa é admitir a realidade, ou seja, os crimes contra a humanidade, outra coisa é a perigosa ideia de reparar o irreparável e o que não é quantificável. Tarifar o crime contra a humanidade de forma perpétua é estabelecer sobre alguns a pecha de algo semelhante ao “pecado original”: estarão sempre, de alguma maneira, contaminados.

Uma nação perde sua potência coletiva ao colocar a história como objeto jurídico. Óbvio, entendemos que as comissões de verdade são importantes para apuração de fatos a fim de se fazer justiça aos envolvidos e para se registrar na história os relatos tal como são. O que parece ser um grande equívoco, por exemplo, é marcar com sinal de culpa os descendentes daqueles réus – transformados em verdadeiros fantasmas. Esse exercício movimenta interesses de poder, de reescrita da história e de condenação simbólica a determinados grupos da sociedade, e boa parte da esquerda comprou essa ideia.

A Nova Esquerda: fragmentação da sociedade e ausência de uma “moeda política comum”

Temos hoje uma esquerda que deslocou seu foco do capitalismo para a cultura e hoje aliena o povo a partir de uma reorganização do imaginário coletivo. Em outras palavras, fragmentou-se a sociedade em inúmeros grupos que, por sua vez, apresentam diferentes demandas que possuem dificuldade em estabelecer um plano comum para uma política nacional. Neste caso, segundo Mark Lilla (2018), o que o neoliberalismo identitário faz é afastar uns dos outros. Segundo o mesmo autor, o único jeito de conseguir defender as minorias é ter uma “mensagem com apelo para o maior número possível de pessoas e assim uni-las”, caso contrário, esse tipo de engajamento trará como resultado a pseudopolítica de autoestima e de autoidentificação que, desde a década de 1980 nos EUA, tem feito surgir novas formas de exclusão – inclusive em universidades com a dificuldade de se pensar no bem comum. Nesse aspecto, de uma ausência de um bem comum, surgem outras críticas mais amplas:

No caso dos movimentos sociais, vimos desdobramentos relevantes dos movimentos sindicais e operários do início do século XX até os atuais, marcados por lutas identitárias de mulheres, de negros, de indígenas, de sem-teto, de sem-terra etc. Eles foram e são importantes. Mas, na medida em que privilegiam projetos de libertação social pela valorização da lógica dos conflitos utilitários nos marcos do liberalismo, terminam não considerando a importância da busca de novas utopias fora do espectro moral do liberalismo e mais abertos ao entendimento do conflito como dom agonístico. [...] O neotribalismo [conceito de Bauman] reivindica corretamente os direitos dos movimentos (étnico, sexual, de gênero, religioso, cultural etc.), mas peca por não conseguir encontrar uma moeda política comum para ações compartilhadas em favor da democracia ampliada. (MARTINS, 2019, p. 43-44; grifos meus)

O marxismo tem sido julgado como culpado pela Nova Esquerda por seu reducionismo econômico e a figura do “operário” foi substituída pelos “grupos marginais”, que tentam dar luz a um ser revolucionário capaz de ajudar a fundar uma democracia que articule cada vez menos o modelo de luta de classes e cada vez mais uma política de identidades dentro do quadro de lutas sociais. Como disse Éric Conan em algum lugar: “Perde-se um povo, encontram-se dez”. A chamada “cidadania cultural” recusa, na prática, a ideia de Nação, pois defende “um conjunto desconjuntado de ‘nações’ dentro de uma extensão territorial que falsamente tratamos como se fosse uma só nação” (RISÉRIO, 2022, p. 519).

“Como conseguir uma ‘moeda política comum’ diante de Nação negada e as múltiplas identidades exaltadas?”, perguntam os pesquisadores Nelson Lellis e Roberto Dutra.

Portanto, a cidadania nacional perde cada vez mais espaço para uma cidadania cultural, cujos protagonistas formam o que já tem sido reconhecido como “sociedade dos oprimidos”. Esses oprimidos redesenham a figura dos “ novos proletários” ampliando o quadro para identidades distintas. Risério (2022, p. 526) observa que: “Em 1922, nossos artistas, cientistas, políticos, intelectuais etc., se engajaram num projeto de faces diversas, mas que tinha como meta central o conhecimento de nossa história e a modernização do país”; e continua: “Seu propósito era afirmar a nação. Em 2022, ao contrário, o objetivo é negá-la”. Essa provocação do antropólogo e historiador brasileiro não desconsidera a diversidade do pensamento político nem mesmo dos diferentes campos de enfrentamento diante das ameaças de apequenamento da democracia e do real desenvolvimento, mas lança, certamente, suas garras contra uma diversidade que não se interessa pela identidade nacional, essa sim, responsável por um norte econômico capaz de gerar menos desigualdade.

Como conseguir uma “moeda política comum” diante de Nação negada e as múltiplas identidades exaltadas? Há tentativas que buscam propor novas teorias onde o diálogo e intersecções entre as epistemologias do Norte e do Sul Global tornam-se ponto de partida (MARTINS, 2019); onde a economia solidária é debatida para se pensar formas de emancipação no sistema capitalista (LAVILLE; FRÈRE, 2023); ou trabalhos de desconstrução da ideia de “soberania” das designações identitárias (ROUDINESCO, 2022). Mas nos parece que estes ficam no meio do caminho, pois não conseguem criticar devidamente o projeto de cidadania por identidade e nem indica alternativas de reconstrução de formas de identidade e solidariedade complexas capaz de orientar um processo de desfragmentação política e de construção da cidadania nacional.

(In)conclusão

A sociedade moderna é a primeira em que a desigualdade entre pessoas e coletividades é percebida como problema social. Nas sociedades pré-modernas, a desigualdade não era problema social nem político. Em muitas delas, como nas sociedades feudais, coloniais e de casta, a desigualdade era até mesmo afirmada como garantia de ordem e ajustamento cósmico. Apenas nas sociedades surgidas com as revoluções econômicas, políticas, jurídicas, educacionais e tecnológicas do final do século XVIII na Europa e na América do Norte, e que atingiram significado e escopo global a partir da segunda metade do século XIX, é que o valor da igualdade ganhou primazia sobre a desigualdade, servindo de fonte para o questionamento de assimetrias sociais em diversos contextos e lugares.

Como é possível que a vida social nos permita ver a desigualdade como um problema e não como garantia natural de ordem? A crítica e a problematização da desigualdade social do ponto de vista da justiça e igualdade pressupõem uma ordem social capaz de permitir a dissolução de estruturas de desigualdade sem que isso inviabilize a própria ordem social. Nem toda ordem social comporta a problematização e a mudança das estruturas de desigualdade social. Sociedades de pequeno porte territorial e demográfico, que dependem de características concretas e conhecidas de pessoas e populações para garantir relativa previsibilidade das práticas sociais cotidianas, dificilmente podem abrir mão de produzir e manter desigualdades duradouras e naturalizadas como fundamento da ordem social. A igualdade é uma abstração inventada pela evolução sociocultural que permite haver ordem sem que pessoas e populações sejam avaliadas o tempo todo com base em seus traços concretos. Sem a emergência de formas de participação na vida social que abstraem destes traços concretos não poderia haver igualdade em sociedades complexas, com crescentes diferenças reais e concretas entre as pessoas e coletividades. Essas formas abstratas de participação são aquelas criadas por sistemas sociais como a economia de mercado moderna (o empreendedor, o trabalhador), a política inclusiva moderna (o cidadão), o direito positivo (a personalidade jurídica), o ensino (o infante educável independente de sua origem) e, não menos importante, a filiação e a mobilização militar dos cidadãos.

No entanto, apesar do valor da igualdade se fazer presente na busca por inclusão nestas diferentes esferas da sociedade, é a partir de sua institucionalização na filiação militar nacionalmente generalizada, na política, no direito que a igualdade passa a servir de parâmetro para problematizar as assimetrias encontradas no acesso à educação, à saúde, à cultura e à segurança econômica. É somente como resultado de práticas e estruturas sociais específicas das esferas militares, política e jurídica (filiação militar generalizada, democracia e igualdade jurídica) que a desigualdade deixa de ser vista como um dado natural para ser percebida como um obstáculo à realização de objetivos sociais e individuais. A problematização jurídica e política da desigualdade é o resultado da diferenciação da sociedade em esferas sociais autônomas (economia, política, direito, esfera miliar, ciência, família, religião, artes etc.), que abre um horizonte de observação no qual assimetrias entre indivíduos e grupos sociais podem ser percebidas como contingentes e arbitrárias. No entanto, como demonstra o sociólogo do direito Chris Thornhill (2018), não podemos perder de vista o nexo entre cidadania igualitária e filiação militar na articulação constitucional da ideia moderna de igualdade política e jurídica. A legitimação político-jurídica da igualdade se alimentou e ainda se alimenta decisivamente da participação militar em revoluções, movimentos anticoloniais e guerras civis e externas.

“A sociedade moderna é a primeira em que a desigualdade entre pessoas e coletividades é percebida como problema social”, dizem os pesquisadores Nelson Lellis e Roberto Dutra.

Como afirma o filósofo Michael Walzer (1983), a igualdade moderna é complexa, pois não supõe a eliminação de toda e qualquer assimetria social, mas especificamente aquelas que se somam umas às outras e geram um processo de acumulação de vantagens e desvantagens que destroem a possibilidade de igualdade no acesso a um padrão de vida considerado “digno” e “civilizado” em cada contexto. A igualdade moderna não pode ser absoluta porque a sociedade não é uma unidade, mas uma pluralidade de esferas. É este tipo de igualdade complexa que chamamos de cidadania. Em sociedades estamentais como o sistema feudal e o colonial, havia uma unidade estrutural que bloqueava o horizonte comparativo e com isso contribuía para a legitimação não problemática da desigualdade. Em sua clássica sociologia da cidadania, o sociólogo Thomas H. Marshall (1967) vincula o desenvolvimento da busca por igualdade à superação desta unidade estrutural característica de sociedades estamentais e à diferenciação da sociedade em instituições funcionalmente especializadas. Em sociedades feudais, afirma, “não havia nenhum princípio sobre a igualdade dos cidadãos para contrastar com o princípio de desigualdade de classes” (MARSHALL, 1967, p. 64). O mesmo vale para outras formas de desigualdade como as de gênero e raça/etnia.

Tudo isso significa que a primazia valorativa da igualdade enquanto horizonte que condiciona a problematização da desigualdade não é um dado. Muitos autores levantam a hipótese da possível formação de uma sociedade “neofeudal”, marcada pela eliminação deste horizonte igualitário em esferas como o direito e a política, fazendo surgir novas estruturas sociais capazes de suprimir a diferenciação da sociedade em esferas e de concentrar de modo naturalizado o acesso aos recursos sociais. A desigualdade pode deixar de ser um problema para se tornar novamente um dado natural. Esta hipótese não deve tratada como uma tendência inexorável, mas sim como uma possibilidade evolutiva. O aumento vertiginoso das desigualdades econômicas, os obstáculos à superação de desigualdades raciais, étnicas e de gênero em diferentes esferas sociais e a fragilidade institucional dos direitos igualitários de cidadania são fenômenos que apontam justamente para a possibilidade de desconstrução do horizonte normativo e cognitivo da igualdade e da consequente renaturalização das assimetrias sociais dos mais diversos tipos.

A gramática moderna da igualdade é abstrata e quando se restringiu ao seu aspecto formal nunca foi capaz de contribuir diretamente para a implantação de alguma igualdade significativa no acesso aos bens e recursos sociais. Foram certas dinâmicas e lutas políticas que, problematizando a contradição entre igualdade formal e desigualdades materiais concretas da economia e da educação, puseram em marcha processos de ampliação da cidadania e da igualdade. Os grupos particulares que buscavam direitos sociais e trabalhistas foram capazes de forjar um universalismo novo, mais complexo, capaz de incluir excluídos. O mesmo aconteceu com movimentos feministas e antirracistas no século XX em suas lutas políticas por cidadania. Para isso, não se podia abrir mão da abstração universalista e de suas instituições como a democracia e a igualdade de direitos. No contexto em que corremos o risco de perder a capacidade cognitiva e normativa de problematizar e politizar as desigualdades, a gramática do identitarismo é um obstáculo adicional: ao firmar de modo essencialista e exclusivista o primado de identidades particulares, e negando com isso todo tipo de universalismo, a “política identitária” ensina a abrir mão daquilo que é necessário para problematizar a desigualdade e produzir um nível significativo de igualdade social.

Não se trata de responsabilizar o identitarismo por tudo. Certamente existem fatores muito mais importantes para explicar a despolitização da desigualdade. Mas não se pode negar a importância da política e de sua autonomia em produzir e desdobrar artefatos sociais abstratos como a igualdade e cidadania. Ocorre que o identitarismo, desconhecendo que suas identidades são também artificiais e contingentes, bloqueia esta capacidade inventiva e imaginativa da política em produzir identificações coletivas mais amplas e abstratas. O dano causado pelo identitarismo não reside apenas em sua ênfase unilateral no moralismo exclusivista e na redução da política à performance discursiva, mas sim em sua negação da possibilidade de discursos universalistas sem os quais tanto a igualdade quanto a problematização da desigualdade somem do horizonte sociocultural e político. Por isso, o identitarismo é sim parte da despolitização da desigualdade. É falsa política que não contribui para problematizar e transformar as desigualdades que impedem a realização e universalização de uma vida “digna” e “civilizada”.

FONTE
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terça-feira, 29 de agosto de 2023

Crime organizado e extrema direita, o explosivo coquetel latino-americano * Gustavo González/IPS

 Crime organizado e extrema direita, o explosivo coquetel latino-americano

Gustavo González/IPS


Na evolução política cada vez mais esquizofrênica da região, os acontecimentos eleitorais levantam questões sobre a continuidade de um ciclo progressista ou uma nova reviravolta que tende a instalar fórmulas de extrema direita...


Duas datas chave para a América Latina no futuro imediato: no domingo, 20 de agosto, será realizado o primeiro turno das antecipadas eleições presidenciais em um Equador abalado pelo assassinato do candidato Fernando Villavicencio, e nesse mesmo dia acontecerá o segundo turno. na Guatemala. A segunda data chave: domingo, 22 de outubro, a das eleições gerais na Argentina, onde Javier Milei, um forasteiro da extrema direita, poderá ratificar sua vitória nas primárias de domingo, 13 de outubro, na disputa pela presidência da Casa Rosada assento. .

 

Na evolução política cada vez mais esquizofrênica da região, os acontecimentos eleitorais levantam questões sobre a continuidade de um ciclo progressista ou uma nova volta do parafuso que tende a instalar fórmulas de extrema direita, apegadas ao dogma neoliberal e promotoras do autoritarismo após uma política supostamente libertária. discurso.

 

Um ator político ilegal e poderoso

 

Um cenário complexo, onde os atores tradicionais da política e da economia como referentes dos eleitores, são hoje superados ou deslocados por um protagonista que a partir da ilegalidade tenta tomar conta do palco: o crime organizado que se alimenta de cartéis e gangues de drogas.

 

Os alarmes soaram em Quito no dia 9 de agosto, quando Villavicencio, jornalista, candidato presidencial de um movimento centrista que fazia do combate à corrupção o eixo de sua plataforma política, foi baleado por um grupo de pistoleiros quando saía de uma concentração proselitista em a capital do Equador.

 

A rigor, não foi o primeiro assassinato político no Equador e na América Latina, nem foi a primeira ação atribuível aos cartéis de drogas, mas não há dúvida de que mostra, como nunca antes, o crescimento e o poder do tráfico de drogas, com a sua ramificações internacionais e a sua capacidade de desestabilizar politicamente a região.

 

As análises e relatórios sobre o caso equatoriano dão conta da penetração neste país de 17,5 milhões de habitantes de máfias do tráfico de drogas da Colômbia e do Peru, seus vizinhos, e também do México e da distante Albânia, que construíram redes criminosas que articulam e disputam territórios e mercados mesmo com batalhas campais e dezenas de mortes num sistema prisional saturado.

 

A economia dolarizada e as fronteiras marítimas e terrestres permeáveis ​​foram favoráveis ​​ao tráfico de drogas, bem como à corrupção que atinge todas as esferas do poder, inclusive a polícia. Corrupção que colocou em xeque o presidente Guillermo Lasso que, diante da possibilidade de ser destituído, recorreu ao remédio constitucional de dissolver o parlamento e convocar eleições gerais antecipadas.

 

Oito candidatos presidenciais se enfrentarão no domingo, dia 20, para ocupar a presidência até o ano de 2025. Antes do assassinato de Villavicencio, as pesquisas davam a primeira maioria a Luisa González, advogada de 45 anos, candidata do Movimiento Revolución Ciudadana, sucessor de o ex-presidente Rafael Correa (2007-2017) exilado na Bélgica.

 

Muito provavelmente, a disputa presidencial será resolvida no segundo turno, marcado para 15 de outubro. Teria como protagonistas González e o jornalista Christian Zurita, designado pelo Movimento Construye como substituto do assassinado Villavicencio, embora as urnas até 9 de agosto desenhassem uma briga pelo segundo lugar entre o líder indígena e ambientalista Yaku Pérez e a direita - ala Otto Sonnenholzner.

 

Será que o fator emocional pesará para que uma boa porcentagem dos eleitores equatorianos opte por Zurita? Quanto o antigo confronto entre Villavicencio e Correa influenciará para subtrair votos de González? Perguntas válidas, principalmente considerando que 40% dos eleitores ficaram indecisos e que 16 a 20% foram anunciados para votos nulos e em branco.

 

Insegurança aliada ao neoliberalismo

 

É claro que as pesquisas estão longe de ser infalíveis, como ficou demonstrado nas primárias argentinas, que atribuíram 20% a Milei e o colocaram em terceiro lugar, atrás da direitista Patricia Bullrich e do peronista Sergio Massa. No final, Milei atingiu 30%, capitalizando a raiva dos argentinos com o aumento da pobreza e a inflação que se aproximava da taxa anual de 200%.

 

Emular o extremo neoliberalismo da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) no Chile com absoluta liberdade de importação e exportação, liberalizar completamente o mercado, inclusive de compra e venda de órgãos, eliminar o Banco Central e o Ministério da Mulher, autorizando a porte de armas a particulares são pontos da plataforma vencedora de Milei e do seu partido La Libertad Avanza.

 

A questão que permanece é se os eleitores argentinos avaliaram estas propostas quando votaram neste economista vociferante que, tal como Donald Trump e Jair Bolsonaro, nega as alterações climáticas, ou se foram unicamente gravitados pelo desespero devido a uma crise económica causada em grande medida pela asfixia do Fundo Monetário Internacional ao governo de Alberto Fernández.

 

Um exultante José Antonio Kast, líder do Partido Republicano de extrema direita no Chile, parabenizou Milei com esta mensagem: “Para o bem da Argentina, que vença a força da liberdade e que a corrupção, a insegurança e a mediocridade sejam derrotadas”.

 

A apropriação da liberdade como slogan de propaganda é uma característica que se replica na extrema direita. Nem Kast nem Milei são exceção, com uma espécie de cumplicidade com este último por parte de alguns meios de comunicação que o chamam de “candidato libertário” com base no nome do seu partido.

 

Assim, o fenômeno deste outsider argentino também se explica por uma equação que combina a liberdade dos mercados com o cerceamento dos direitos humanos, especialmente dos direitos das mulheres, como forma de garantir a estabilidade e enfrentar a crise de segurança que assola toda a América Latina em graus variados.

 

O crime organizado acaba por ser um promotor de soluções autoritárias, ao estilo do presidente salvadorenho Nayib Bukele, cuja popularidade irreprimível cresce em relação direta com as violações dos direitos fundamentais. El Salvador tem um registo nada invejável de execuções extrajudiciais nas suas prisões habitadas por alegados membros do gangue Mara.

 

Este não é um quadro animador para a região, especialmente depois que o assassinato de Villavicencio no Equador voltou a posicionar o fenômeno do tráfico de drogas como um problema exclusivamente latino-americano, que talvez pudesse ser resolvido com a militarização do combate aos produtores de cocaína e maconha. .e a repressão massiva das suas redes de apoio.

 

Tráfico de drogas e consumo de drogas

 

Se existe tráfico de drogas é porque é um bom negócio que tem um vasto mercado consumidor no hemisfério norte. O Relatório Mundial sobre Drogas 2023 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) reafirma que entre os 15 maiores usuários de cocaína no mundo há apenas quatro países latino-americanos e oito na Europa, além dos Estados Unidos, Canadá e Austrália .

 

A estatística, que se refere ao consumo de drogas na população com mais de 15 anos, estabelece que em números absolutos nos Estados Unidos existem 5,3 milhões de usuários de cocaína, 37 milhões de usuários de maconha, 6,6 milhões de usuários de anfetaminas e dois milhões de usuários de ópio.

 

Neste cenário distorcido, questões fundamentais são relegadas a segundo plano e notícias importantes são praticamente ignoradas, como os acordos da reativada Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, cujos oito governos, reunidos em Belém nos dias 8 e 9 deste mês, avançaram medidas para parar o desmatamento na Amazônia, realizado em grande escala sob o governo do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (2019-2022).

 

Assim como a América do Sul, a América Central também enfrenta uma crise de segurança e o câncer da corrupção e, embora relegada às atenções noticiosas devido ao caso equatoriano, o segundo turno das eleições presidenciais na Guatemala neste domingo, dia 20, ganha importância.

 

Sandra Torres, do partido Unidade Nacional da Esperança, caracterizada como candidata dos setores tradicionais, promete imitar Bukele em suas políticas de segurança, enquanto seu adversário, Bernardo Arévalo, do Movimento Semente de centro-esquerda, enfatiza o combate à corrupção, apontado como o fenômeno mais grave do país pelas organizações internacionais.

 

Um possível triunfo do social-democrata Arévalo fortaleceria um progressismo centro-americano, longe do totalitarismo de Daniel Ortega na Nicarágua, próximo do governo de Xiomara Castro em Honduras e seria uma reivindicação histórica com o filho de Juan José Arévalo, o primeiro presidente democrático da Guatemala, que governou o país entre 1945 e 1951.


*Jornalista e escritor. Mestre em Comunicação Política, Diplomado em Jornalismo e Crítica Cultural pela Universidade do Chile. Foi diretor da Escola de Jornalismo da mesma universidade (2003-2008) e presidente da Associação de Correspondentes de Imprensa Internacionais do Chile (1992-1995). Correspondente no Equador e diretor do escritório da Inter Press Service no Chile, e editor da agência na Itália e na Costa Rica. Também foi correspondente da Latin America Newsletter (Inglaterra), El Periódico de Barcelona (Espanha), da revista Brecha (Uruguai) e do jornal Milenio (México). Autor dos livros «Caso Spiniak. Poder, ética e operações midiáticas” (ensaio), “Nomes de mulheres” (contos) e “A morte da dançarina” (romance).


segunda-feira, 28 de agosto de 2023

“O DESMANTELAMENTO” DO BRASIL COMO NAÇÃO * J. Carlos de Assis

“O DESMANTELAMENTO”
DO BRASIL COMO NAÇÃO
J. Carlos de Assis

Não se pode subestimar simplesmente como ridículas as ameaças do lobista Gunther Fehlinger, um propagandista da expansão da OTAN, para que essa aliança militar promova o “desmantelamento” do Brasil por causa de sua aproximação com a Rússia, no âmbito do BRICS. De fato, a OTAN não teve escrúpulo em virtualmente destruir países como Iugoslávia, Checoslováquia e Líbia por motivos geopolíticos. Isso, para os belicistas da organização, justifica o ataque também ao Brasil.
O nó da questão é Rússia e China. A OTAN – ou os EUA, que a controlam – veem o BRICS, agora com mais seis integrantes, como ameaça definitiva a seu domínio geopolítico absoluto do mundo. O objetivo de Fehlinger é, pois, liquidar com o BRICS, com a desculpa de defender a “democracia” contra o que chama do “genocida” Vladimir Putin. Como destruir todos os Estados do BRICS, militarmente, seria uma guerra mundial catastrófica, ele propõe começar pelo Brasil, um lado mais fraco.

Sua ameaça só seria absurda se, internamente, o país não estivesse efetivamente dividido. Mas está. O bolsonarismo é ainda uma parte relevante do eleitorado, até o ponto de seus integrantes honrarem como heroicos e “patriotas” os atentados de 8 de janeiro, num dos Estados mais importantes da Federação. Não só isso. A prova cabal da vulnerabilidade brasileira ao “desmantelamento” geográfico foi o “desmantelamento” temporário da democracia por ocasião do golpe contra Dilma Roussef em 2016.

Depois da derrota vergonhosa no Afeganistão, os EUA haviam proclamado solenemente, através do primeiro discurso de Joe Biden na Assemblia Geral da ONU, em setembro de 2021, o compromisso com a diplomacia como meio de solução dos conflitos entre os estados. Pouco depois, porém, ele tomou a iniciativa de articular contra o resto do mundo um bloco de mais de 100 países ditos “democráticos”, discriminados por serem dirigidos por líderes ou regimes supostamente autoritários.

Começou aí a segunda Guerra Fria. O instrumento principal dela já não é mais o confronto direto através da intervenção armada dos EUA contra estados simpatizantes do bloco rival, mas o “desmantelamento” desses mediante sublevações internas instigadas de fora. No Brasil, após a criação do BRICS, tivemos, em 2014/2015, grandes manifestações manipuladas, e a derrubada de Dilma, além do lawfare da Lava Jato contra Lula. Só isso basta para dar conta de nossa vulnerabilidade.

Portanto, se corremos o risco de “desmantelamento”, não será por conta das bravatas de Fehlinger. Será em razão de inimigos internos de nossa autonomia política, instigados pelos que pretendem segurar de qualquer forma, do exterior, a hegemonia geopolítica dos EUA no mundo. Devem, sim, ser levados a sério. Principalmente porque não se trata de um episódio isolado na história da Humanidade. É uma corrente que se forma com força crescente no planeta, pela retomada geral do fascismo.

É muito provável que o povo politicamente primata norte-americana eleja de novo, como presidente, o neofascista e criminoso confesso, Donald Trump. Na Europa já há neofascistas no poder na Hungria e na Itália. Na Argentina ainda não sabemos para onde vai a política, mas as perspectivas são sombrias, depois da vitória de Rafael Milei nas primárias. Portanto, mesmo fora do poder formal, mas inspirado de fora, Bolsonaro terá aliados para unir neofascismo, separatismo gaúcho e “desmantelamento” do país.

Por vivermos tradicionalmente num país pacífico, pelo menos desde a Segunda Guerra, nos acostumamos a acompanhar os eventos mundiais como situações que não nos dizem respeito. Jogamos um jogo inteligente na Guerra Fria, nos equilibrando entre os blocos em conflito, e tirando algum proveito disso. Agora nos defrontamos com um quadro inteiramente novo. Há hegemonias em disputa. A geopolítica e a econômica. O lado ocidental não quer nos dar o privilégio da neutralidade.

Para avaliar a originalidade da situação atual, é suficiente considerar que até um pequeno país tradicionalmente neutro durante a primeira Guerra Fria, como a Finlândia, foi forçado a tomar partido a seu favor pelos EUA, diante da guerra na Ucrânia. A firme posição brasileira de condenar a guerra, mas buscar a paz negociada, não é tolerada, na medida em que o ocidente exige a rendição incondicional da Rússia. Mesmo Kiev, em 2022, teve que rasgar um compromisso de paz com Moscou forçada pelos EUA.

É uma ilusão imaginar que os EUA desistirão, sem luta, de insistir em manter sua posição hegemônica nos países em que ainda a detêm. O Brasil é o alvo mais atrativo. Pertencente ao lado ocidental pela geografia, e culturalmente ligado a ele pela História, o país é visto por Washington como um vassalo a ser manietado. Por isso o Sul Global não foi levado muito a sério quando o BRICS foi criado, tendo em vista as diferenças fundamentais, em vários aspectos, entre o Brasil e seus integrantes orientais.

Contudo, a conferência de Johanesburgo mostrou que há mais interesses comuns entre os BRICS do que supunham os seus detratores. Com a expansão do bloco, ele se tornou quase metade do PIB mundial e o maior produtor de petróleo, de gás e de alimentos. É natural que figuras como Fehlinger vocalizem o desespero da Europa em sua posição de fraqueza relativa. O pior conselheiro do desespero é a temeridade. Daí que a ameaça estapafúrdia de “desmantelamento” do país deve ser levada a sério.

domingo, 27 de agosto de 2023

Onze sinais do fascismo segundo Umberto Eco * Cândido Grzybowski/iBase

Onze sinais do fascismo segundo Umberto Eco
Cândido Grzybowski/iBase

Segundo pensador italiano, o culto à tradição; a repulsa ao moderno; o machismo; o racismo; a guerra permanente são típicos do “fascismo eterno”. Ou seja, a ameaça já está implantada entre nós, mesmo que não siga seu nome.

Tenho refletido e escrito sobre a perda de vitalidade da democracia. Mas acho que agora já entramos num perigoso caminho de desconstrução da democracia, uma ameaça que vem na esteira do golpe do impeachment e se expressa hoje no nosso governo híbrido, civil-militar, com sua agenda anti direitos. Claro, a institucionalidade democrática formal está mantida até aqui, mas algo por dentro vem corroendo os princípios e valores éticos e políticos vitais da democracia: o respeito incondicional da liberdade de ser, pensar e agir, a busca da maior igualdade possível, com direito à diversidade, convivendo em solidariedade coletiva e baseando tudo em ativa participação cidadã. Tais princípios constituem o substrato de qualquer democracia com potencial de transformar contradições e divergências, de potencial destrutivo, em forças construtivas de sociedades mais livres e justas.

Hoje reconheço um vírus implantado em nosso seio que pode acabar com a democracia e nos levar ao fascismo como regime político. Estamos diante de sinais inequívocos de tal vírus no campo de ideias e valores que foram se revelando e se condensaram na vitória eleitoral e nas falas do presidente e de integrantes do governo empossado. A leitura de um discurso de Umberto Eco, de 24 de abril de 1995, na Universidade de Columbia, Nova York, publicado em espanhol por Bitacora, sob o título Los 14 síntomas del fascismo eterno, me inspirou. Segundo Eco, as características típicas do “Ur-Fascismo” ou “fascismo eterno” não se enquadram num sistema, “…mas basta com que uma delas esteja presente para fazer coagular uma nebulosa fascista” (em tradução livre). Vou lembrar aqui apenas alguns dos indícios do eterno fascismo que Eco aponta e que deixo aos leitores desta minha crônica identificar as suas expressões na realidade brasileira.

Culto da tradição – como se toda a verdade já estivesse revelada há muito tempo e o que precisamos é ser fiéis a ela. O tradicionalismo é uma espécie de cartilha na disputa de hegemonia fascista sobre corações e mentes. O pensamento do principal guru dos “donos do poder”, a pregação das igrejas pentecostais e as falas – quando dizem algo – são impregnados de uma veneração da verdade já revelada em escritos sagrados e de valores espirituais mais tradicionais do cristianismo. “Deus, pátria, família e propriedade”, com a força que estão de volta como pregação, não deixam dúvida. Fascismo e fundamentalismo sempre vêm juntos.

Repulsa ao modernismo – que leva a considerar as conquistas humanas em termos de direitos e de emancipação social como perversidades da ordem natural. Nega-se, em consequência, a racionalidade e, com ela, toda a ciência e a tecnologia. Não falta gente com tal forma de pensar no governo e seus seguidores. Para eles, direitos iguais são um absurdo. Mudança climática é uma “invenção de comunistas”. E por aí vai.

Culto da ação pela ação – fazer e agir, acima de tudo. Como diz Eco, para fascistas “pensar é uma forma de castração”. Daí a atitude de suspeita à cultura, pois é vista como algo crítico. Em consequência, todo mundo intelectual é suspeito. Ainda Eco, “O maior empenho dos intelectuais fascistas oficiais consistia em acusar a cultura moderna e a intelligentsia liberal de ter abandonado os valores tradicionais”.

Não aceitação do pensamento crítico – pensar criticamente é fazer distinções e isto é sinal de modernidade, pois o desacordo é base do avanço do conhecimento científico. O fascismo eterno considera a divergência como traição. Deve-se aceitar a verdade da ordem estabelecida. Daí, “escola sem partido”, sem iniciação ao pensamento crítico e a liberdade de expressão e ação.

O racismo na essência – segundo Eco, com medo da diferença, o fascismo a explora e potencializa em nome da busca e da imposição do consenso. Os e as diferentes não são bem vindos. Por isso, o fascismo eterno é essencialmente racista e xenofóbico. Daí a identificar os diferentes como criminosos a linha é reta.

O apelo aos precarizados e frustrados – todos os fascismos históricos fizeram apelo aos grupos sociais que sofrem frustração e se sentem desleixados pela política. As mudanças no mundo do trabalho, promovidas pela globalização econômica e financeira, são terreno fértil para o fascismo.

O nacionalismo como identidade social – nação como lugar de origem, com os seus símbolos. Os e as que não se identificam com isso são inimigos da nação. Portanto, devem ser excluídos. Podem ser os nascidos fora da nação, como os imigrantes, ou por se articularem com forças externas – o tal “comunismo internacional” – ou, ainda, por não se enquadrarem no padrão “normal” de nacionalidade. O nacionalismo vulgar é o cimento agregador de qualquer fascismo.

A vida como guerra permanente – no fascismo, a gente não luta pela vida, liberdade, bem viver, mas vive para lutar. A violência é aceita como regra e a busca de paz uma balela. Vencem os mais fortes, armados. Há um culto pela morte na luta.

O heroísmo como norma – o herói, um ser excepcional, sem medo da morte, está em todas as mitologias. Aqui basta lembrar a exploração feita daquele atentado em Juiz de Fora. O herói vira mito real.

O machismo como espécie de virtude – em sendo difícil a guerra permanente e a demonstração de heroísmo, o fascismo potencializa as relações de poder na questão sexual, segundo Umberto Eco. Aqui também não faltam manifestações de patriarcalismo e machismo, com intolerância com o que é considerado divergente da norma em questões sexuais. Não há lugar para a liberdade de opção sexual e de gênero.

O líder se apresenta como intérprete único da vontade comum – o povo é o seu povo, o seu entendimento do que seja o povo e sua vontade comum. Como diz Eco, estamos diante de um populismo de ficção.

Chamei atenção aqui para indícios de fascismo total apontados por Umberto Eco – não todos, para não ser enfadonho e talvez desvirtuar o que o autor quis dizer – com a preocupação de dar atenção a ideias e imaginários que estão adquirindo legitimidade mobilizadora no nosso seio. Inspirado no atualmente renegado Antônio Gramsci, exatamente pelo emergente fascismo político e cultural, penso que a conquista de hegemonia no sentido de direção intelectual e moral precede o poder do fascismo pela força estatal. Ou seja, a ameaça de fascismo já está implantada entre nós, mesmo se o regime ainda não parece ser fascista.

Fonte
https://outraspalavras.net/outrasmidias/onze-sinais-do-fascismo-segundo-umberto-eco/
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sábado, 26 de agosto de 2023

MARXISTAS E "MARXISTAS" * Uriel Centeno - Nicarágua

MARXISTAS E "MARXISTAS"
ESQUERDA X PROGRESSISMO

(Primeira parte)

Uma das questões que mais gera debates e “debates” é o papel do marxismo e de dois marxistas na Revolução Popular Sandinista, RPS. Da mesma forma, no âmbito de dois esforços educativos, procuramos dar continuidade ao projeto da Escola de Pintura “Francisco Moreno”, vamos iniciar uma série de artigos sobre ideias que devem ser consideradas sobre esta matéria.

A primeira coisa a notar é que o marxismo é, acima de tudo, uma ciência. Uma ciência que nos permite analisar a realidade; No entanto, concentremo-nos no terreno social. Também podemos nos concentrar em afirmar que o marxismo é uma ciência de análise e de transformação social.

Para transformar uma sociedade é preciso primeiro analisá-la, estudá-la e compreendê-la (compreendê-la aqui significa compreender suas características essenciais).

Então, o que é uma ciência? Quais são as características da ciência? Qualquer conjunto de conhecimento humano, para ser denominado “ciência”, deve atender a um conjunto de requisitos, características ou condições. Talvez alguém nomeie essas características, já que são estudadas nas escolas primárias e secundárias.

A primeira característica da ciência é o seu objeto de estudo. Toda ciência tem um objeto de estudo, nenhuma ciência estuda tudo, toda ciência sempre foca em um aspecto da realidade. Isto é o que nos diz que ele não está me ensinando; Por exemplo, a biologia estuda as características gerais e comuns de todos os seres vivos. Da mesma forma, existem ciências que estudam coisas diferentes, como geologia, astronomia, economia, etc. Ou o marxismo, assim como a sociologia, estudam as leis gerais que determinam os processos sociais.

A segunda característica da ciência é o seu método. O chamado método científico, que consiste no fato de que para aceitar novos conceitos é necessário seguir inevitavelmente uma série de passos:

1. Abordagem do tema a investigar, através da formulação de uma questão (problema de investigação). Por exemplo, qual é a causa da pobreza?

2. Declaração de uma possível solução para a questão de pesquisa (hipótese). Aqui está um exemplo de hipótese: por causa da pobreza tenho um baixo nível educacional.

3. Experimentação. Realizamos uma série de estudos ou experiências para obter os dados necessários à análise da pobreza e verificar se as nossas hipóteses são verdadeiras ou falsas. Podemos realizar inquéritos, censos, coletar dados históricos, entrevistas, grupos focais, etc.

4. Analise. Da mesma forma, temos mais dados necessários, analisamos, processamos, comparamos, contrastamos com outros estudos, etc.

5. Conclusão. Como resultado da análise de todos os dados que obtemos, verificamos se a hipótese que levantamos é verdadeira ou falsa. Se a nossa hipótese for verdadeira, então será incorporada como um novo conhecimento científico.

Em alguns livros essas etapas aparecem como: observação, formulação de hipóteses, experimentação e emissão de conclusões; ele ou ela mesma

Estas cinco etapas do método científico são necessárias e essenciais para a obtenção de novos conhecimentos científicos.

A terceira característica de uma ciência é o conjunto de equipamentos experimentais que lhe pertencem e são utilizados nessa ciência. Em biologia, são usados ​​​​microscópios, reagentes; Na astronomia usamos telescópio, espectrômetro, radiotelescópio... Ferramentas estatísticas e outros instrumentos não são usados ​​no estudo da sociedade; Entretanto, a principal ferramenta é a capacidade analítica do próprio pesquisador. A este respeito, Marx afirma no prólogo da primeira edição alemã de O Capital: “para analisar as formas económicas não se pode usar um microscópio sem reagentes químicos.

Uma quarta característica da ciência é possuir um conjunto de conceitos ou categorias (categoria: este é o nome dado aos conceitos mais gerais), ou definições ou termos próprios. Por exemplo, em biologia: célula, espécie ou táxon, DNA. Na astronomia: buraco negro, planeta, supernova. Nas ciências sociais: imperialismo, revolução social, revolução industrial, socialismo, classe social.

A quinta característica da ciência é possuir um conjunto de teorias, sistemas de informação e uma síntese de conhecimentos. Toda pesquisa científica leva a um conjunto de conhecimentos científicos que se acumulam na forma de teorias. Ao contrário das hipóteses, as teorias não são postulados comprovados. Essas teorias baseiam-se em novas investigações, com as quais esse conhecimento é enriquecido, renovado, ampliado. Por isso, ou como conhecimento da realidade, é cada vez mais amplo e profundo.

Com tudo isso, resta refletir profundamente sobre quatro aspectos. Apresento aqui estas quatro ideias, mas, em forma de pergunta, para abordá-las no próximo artigo sobre este assunto, dois marxistas e “marxistas”.

Qual é a relação entre análise social e transformação social?

É possível assumir uma posição ou opinião marxista sobre um assunto, se não utilizarmos o método científico?

Qual de todas as cinco características de uma ciência é a mais importante?

Você pode assumir uma posição ou opinião marxista sem estudar Marx?
(Segunda parte)

Continuamos con la pregunta: ¿Cuál es la relación entre análisis social y transformación social?

Una de las diferencias fundamentales entre Marxistas y "marxistas" es su actitud respecto al análisis social y la transformación social.

Los "marxistas" son excelentes para practicar el análisis teórico alejado de la práctica. Desde tiempos de Sandino, mientras Sandino se enfrentaba, y derrotaba al imperialismo yanqui, los "marxistas" lo criticaban de "pequeño burgués"; mientras el FSLN perdía a sus mejores hijos en la lucha contra Somoza, muchos "marxistas" criticaban al FSLN de "aventurerismo pequeño burgués"; y tal parece que, en las actuales circunstancias, continúa el mismo discurso.

Ese es un rasgo clave y esencial de los "marxistas": el análisis teórico alejado de la práctica. Actualmente, muchos "marxistas", desde fuera de la actividad partidaria, desde fuera de la dinámica práctica de la lucha de clases, desde fuera del trabajo cotidiano en las calles, cómodamente señalan los "errores" del FSLN y las "deficiencias" de su dirigencia.

Los "marxistas" se sienten realizados con el conocimiento de la teoría; y el momento máximo de su realización es ganar un "debate teórico".

Por el contrario, el Marxista asume el análisis social como una herramienta, como un instrumento, necesario para la transformación social.

Marx afirma de forma contundente en las Tesis sobre Feuerbach: "Los filósofos no han hecho más que interpretar de diversos modos el mundo, pero de lo que se trata es de transformarlo".

Marx no solamente era el gran pensador y filósofo que escribía libro tras libro; muy al contrario, dedicó su vida a la lucha por la clase obrera. Una y otra vez, por su actividad revolucionaria, fue perseguido y desterrado. Igual, Marx no escribe El Capital para que fuera discutido en círculos de economistas o especialistas, lo escribe para que sea leído por la clase obrera alemana; de ahí la sencillez del libro, a pesar de los temas tan difíciles que aborda.

Engels, en su discurso ante la tumba de Marx, resalta algo que, nuestros "marxistas" olvidan:

"Marx era, ante todo, un revolucionario. Cooperar, de este o de otro modo, al derrocamiento de la sociedad capitalista y de las instituciones políticas creadas por ella, contribuir a la emancipación del proletariado moderno (...) La lucha era su elemento. Y luchó con una pasión, una tenacidad y un éxito como pocos".

En su artículo "Carlos Marx", Lenin analiza la importancia de la obra de Marx, pero también destaca las penosas condiciones de vida en que vivió Marx. A pesar de su inmenso intelecto, en vez de buscar un acomodado lugar como profesional, consagró su vida a la lucha práctica. En su artículo, Lenin señala: "La miseria asfixiaba realmente a Marx y su familia; de no haber sido por la constante y abnegada ayuda económica de Engels, Marx no sólo no hubiera podido acabar El Capital, sino que habría sucumbido inevitablemente bajo el peso de la miseria ".

El resumen de todo lo anterior es esto: el Marxismo es una ciencia que nos permite interpretar, analizar la sociedad para poder transformarla. Es un instrumento teórico necesario para la transformación social.

El Marxismo no es una doctrina para ser debatida por "estudiosos", "profesionales" o "pensadores". Es una ciencia para la transformación social. Por eso, la responsabilidad de los cuadros revolucionarios es estudiar el Marxismo y llevarlo a las masas no como teoría, sino como una guía para la lucha práctica.

Como decía Ricardo Morales Avilés: "Hay que estudiar nuestra historia y nuestra realidad como marxistas y estudiar el marxismo como nicaragüenses".

En tiempos de Marx hubo pensadores pequeño burgueses que intentaron reanalizar el marxismo desde una perspectiva pequeño burguesa: como un conocimiento teórico de una realidad inmutable. Con ello trataban de eliminar la esencia del Marxismo como ciencia: su misión transformadora. Por ello, Marx, refiriéndose a los "marxistas" franceses llegó a afirmar: "Lo único que sé es que no soy marxista".

Parafraseando a Marx, podemos afirmar que, quien "analiza" la realidad nacional, sin integrarse de verdad y de corazón a la lucha revolucionaria contra el imperialismo yanqui y por la liberación nacional y social del pueblo nicaragüense, no es un Marxista, sino un "marxista".
(Tercera parte)

Continuamos con la pregunta: ¿Se puede asumir una posición u opinión marxista sobre un tema, si no usamos el método científico?

La respuesta es obvia: ¡No!

No se puede asumir una opinión Marxista sobre un tema específico si no se utiliza el método científico.

Muchos analistas, incluso Compañeros que son cuadros políticos, cuando realizan un análisis lo hacen desde una perspectiva subjetiva: basados estrictamente en su opinión personal y no sobre la base de un análisis objetivo.

Es una dificultad seria, porque el investigador social, el cuadro revolucionario, es parte de la misma sociedad que analiza; tiene sus propios gustos y preferencias, y hasta sus propios intereses, sus propias simpatías. Por eso, el Marxista, el cuadro revolucionario, debe despojarse de sus preferencias, gustos y opiniones y asumir el análisis objetivo; lo que significa utilizar el método científico.

Marx elevó el método científico hasta darle un cariz superior, en comparación con los investigadores precedentes.

El método científico Marxista asume una concepción materialista de la historia. Esto no significa una concepción anti religiosa; significa que el investigador, el cuadro revolucionario, a la hora de analizar una situación o un hecho social, debe despojarse de la explicación religiosa y asumir una explicación objetiva, basada en la historia, la economía, la correlación de fuerzas, el nivel de desarrollo social, etc. Por ejemplo, para analizar la pobreza, no se puede partir de que la misma es un castigo divino (Algunas religiones afirman que el sistema de castas se debe a la conducta de cada ser humano en su vida anterior). Es muy importante que los cuadros revolucionarios con creencias religiosas entiendan este enfoque. Si no se asume una explicación objetiva, no se puede llegar a buenos resultados en el análisis.

También, el método científico Marxista asume una concepción dialéctica de los fenómenos. Esto significa asumir dos cosas: primero, que todo está en cambio permanente; por eso, para analizar un fenómeno social (y natural) hay que entenderlo no como algo estático, sino como algo en cambio permanente.

Otro aspecto del método dialéctico es analizar las cosas, los fenómenos sociales, en su relación con otros fenómenos. Por ejemplo, ¿tiene relación la guerra en Ucrania con la defensa de la Revolución Sandinista? ¡Claro que sí!

Si no asumimos una concepción dialéctica, no podremos analizar los fenómenos sociales en su esencia. Por ejemplo, si analizamos la incidencia de la pobreza actualmente en Nicaragua, sin ver su evolución estadística, sus causas históricas, su comportamiento en cada etapa; entonces, muy seguramente llegaremos a conclusiones erróneas sobre las medidas para superarla.

El método científico Marxista es el Materialismo Dialéctico, aplicado a la sociedad se le llama Materialismo Histórico.

En este punto es necesario pasar a otra explicación. Toda ciencia tiene: objeto de estudio, instrumentos, conceptos propios, teorías y método científico. Pero, todo esto lo podemos agrupar en tres partes. El Marxismo, como ciencia tiene estas tres partes:

- método

- instrumentos

- teorías y conceptos

Y un par de preguntas muy importantes para diferenciar a Marxistas de "marxistas" son: ¿Cuál de esas tres partes es la más importante? ¿Cuál es la relación entre esas tres partes?

Lo determinante es el método (materialismo dialéctico) porque la teoría se origina a partir de su aplicación. Lo que inyecta a la teoría un carácter siempre vivo es el método. La realidad, la sociedad, cambia continuamente y si no fuera por el uso de la metodología, la teoría se quedaría desactualizada.

Un error que, con frecuencia hemos cometido, quienes hemos estado dedicados a la enseñanza del Marxismo es que el énfasis en los cursos ha estado centrado en la parte teórica - conceptual, y hemos soslayado la enseñanza del método. Con ello, hemos caído en la enseñanza teórica y, en cierto sentido, dogmática.

Es necesario repetirlo: el método, el método científico, el materialismo dialéctico, el materialismo histórico es lo que hace al Marxismo una teoría viva. Sin embargo, hay que tener mucho cuidado de no malinterpretar lo dicho.

En la relación dialéctica método - teoría, el método juega un papel determinante, activo; pero, la teoría, al ser producto de una aplicación anterior del método, es la base de todo el nuevo proceso de investigación científica.

En el proceso de conocimiento, la aplicación del método se refleja como práctica.

Sin el método estamos paralíticos: sin la teoría estamos ciegos.

Tal como señalaba Lenin:

"La historia de la filosofía y la historia de las ciencias sociales muestran con diáfana claridad que en el marxismo nada hay que se parezca al “sectarismo”, en el sentido de que sea una doctrina fanática, petrificada, surgida al margen del camino real del desarrollo de la civilización mundial".

"No hay teoría revolucionaria sin práctica revolucionaria, y viceversa".

"La práctica es superior al conocimiento (teórico), porque posee, no sólo la dignidad de la universalidad, sino también la realidad inmediata".

Uriel Centeno, Managua, 22 de agosto de 2023.
Escuela de Cuadros "Francisco Moreno"