sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Os operários navais do Rio de Janeiro sob a ditadura do pós-1964: repressão e resistência * Elina Gonçalves da Fonte Pessanha/RJ

Os operários navais do Rio de Janeiro sob a ditadura do pós-1964: repressão e resistência
Elina Gonçalves da Fonte Pessanha*


Resumo: O artigo recupera a experiência dos operários navais do Rio de Janeiro após o golpe militar de 1964, considerando sua tradição de lutas sindicais e ação política, e destaca a importância do contato entre as gerações de trabalhadores para a continuidade da identidade profissional e resistência de classe.

(Palavras-chave: operários navais; sindicalismo; ditadura pós-1964.

Abstract: This article describes the experience of naval workers of Rio de Janeiro after the 1964 military coup, considering their tradition of union struggles and po- litical action, and highlights the importance of the link between generations of workers to the continuity of professional identity and class resistance.

Keywords: naval workers; trade unions; dictatorship post-1964.)

Este artigo reune parte dos resultados de uma longa pesquisa que deu origem ao livro Operários Navais-Trabalho, Sindicalismo e Política na Indústria Naval do Rio de Janeiro, publicado em 2012. Desde os anos 1980 venho acompanhando a trajetória dos trabalhadores em estaleiros privados localizados em torno da Baía da Guanabara, recuperando a memória de seu passado de lutas e sua experiência mais recente, no chão de fábrica e nos sindicatos que representam a categoria.

Em Niterói, a pesquisa desenvolveu-se em bairros onde se concentravam as moradias dos operários (Ilha da Coneição, Barreto) ou no Sindicato dos Metalúrgicos local. A entrada nos estaleiros, permitida no início da pesquisa (primeira metade dos anos 1980), foi depois proibida. No Rio de Janeiro, o trabalho começou pelo Sindicato dos Metalúrgicos local, nos anos 1990, e posteriormente incluiu algumas visitas a estaleiros. Compartilhando a perspectiva adotada por Edward P. Thompson1 sobre o processo de autoformação da classe, tivemos a preocupação de ouvir os próprios trabalhadores sobre sua experiência de trabalho, resistência sindical e participação política, e consultar os registros sindicais de suas demandas e lutas. As fontes de pesquisa foram diversas: documentos sindicais, jornais, panfletos e boletins dos sindicatos e principalmente entrevistas com operários selecionados para compor uma amostra representativa, que considerasse(
* Universidade Federal do Rio de Janeiro, apoio do CNPq.
1 THOMPSON, Edward Palmer. The Making of the English Working Class. Londres: Penguin, 1968.)
grupos etários, carreiras, posições relativas no processo de construção do navio, pertencimento a diferentes estaleiros e proximidade ou não com os sindicatos que os representavam. Além disso, estudos já produzidos sobre a indústria naval no Brasil e no mundo, de variados aspectos, e notícias da grande imprensa sobre alguns dos períodos considerados, foram também analisados.

A pesquisa demonstrou a importância da tradição que esses operários construíram no decorrer do tempo. Reunidos numa das mais antigas “indústrias” do país, eles viram surgir as primeiras manifestações de resistência da classe trabalhadora, formaram associações de ajuda mútua e depois sindicatos de ofícios. Criaram jornais, marcaram presença em congressos operários e participaram de manifestações e greves importantes. Da década de 1950 até o início da década de 1960, período a que muitos se referiam como “época dos operários navais”, esses trabalhadores alcançaram conquistas em termos salariais, de jornada de trabalho e remuneração de horas extras, benefícios que eles não recuperaram até os dias de hoje.

A queda do governo de João Goulart e a tomada do poder pelos militares, em 1964, inaugurando um longo periodo de ditadura, representaram um rude golpe para a classe trabalhadora brasileira. No caso dos operários da indústria naval do Rio de Janeiro, uma das categorias profissionais mais combativas do chamado “velho sindicalismo”, a ditadura militar lhes retirou quase tudo: a identidade profissional de trabalhadores “marítimos”, a sede do sindicato e, em inúmeros casos, o próprio trabalho, base de sua definição social e política. Acompanhar a trajetória desse segmento trabalhador, no período anterior a abril de 1964, pode dizer muito sobre como esses operários vivenciaram o golpe militar e desenvolveram estratégias para resistir aos continuados efeitos da maior exploração fabril, da repressão sindical e do autoritarismo político.

O pré-64: operários navais e marítimos

A década de 1950 abriu novas perspectivas para a indústria naval brasileira. O avanço da industrialização no pós-30, a implantação da grande indústria siderúrgica e a expansão do ramo eletrometalmecanico propiciavam a adoção de novos parâmetros de produção baseados no uso intensivo do aço para a fabricação de embarcações.

Em relação aos trabalhadores, a repressão, inclusive salarial, marcou ainda os primeiros tempos do segundo governo Vargas e, no início de 1951, o Sindicato dos Operários Navais – com sede em Niterói, mas congregando todos os trabalhadores em construção e reparo naval das baías da Guanabara e de Jacuecanga, em Angra dos Reis – teve ainda o registro de uma chapa de oposição para as eleições da diretoria negado pelo Ministério do Trabalho. Entretanto, no final daquele mesmo ano, Vargas concedeu um significativo aumento do salário mínimo, congelado desde 1943. Daí para frente, viveu-se uma época de avanços e recuos nas relações políticas entre governo e trabalhadores.

A partir de 1952, buscando melhorias salariais e de condições de vida, greves explodiram em todo o país: em março de 1953, a Greve dos 300 mil, movimento que parou trabalhadores diversificados de São Paulo e adjacências por quase um mês, garantiu aumentos salariais e lançou as bases para outras grandes mobilizações. Os operários navais, que faziam parte da categoria dos marítimos, realizaram uma grande greve em junho de 1953, muito bem descrita por Dennis Barsted.2 Eles reuniam então os mais de 3 mil trabalhadores do Lloyd Brasileiro, o grande contingente de operários da Costeira (CCN) – ambas empresas de transporte sob controle do Estado – e os trabalhadores (cerca de mil sendo da CCN-Mauá) em estaleiros e oficinas privadas distribuídos pelo litoral. Esta greve, que se desdobrou em novo movimento meses depois, como pressão para cumprir os acordos, fracassou em parte, mas se tornou um referencial importante para as lutas futuras da categoria.

De fato, o período que se estende do final de 1953 a 1964, considerado o auge do chamado “regime populista”,3 foi de muitas conquistas para os operários navais, apesar de terem enfrentado as mudanças introduzidas, a partir de 1958, pelo Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek (1956-1961),4 que inaugurou novos tempos para a indústria naval, consonantes com os padrões de industrialização pesada. Esses dez anos seriam os últimos da “época dos marítimos”, em que esses trabalhadores, ao lado de outros empregados em serviços coletivos, geralmente geridos pelo Estado (como os ferroviários) e de assalariados de grandes empresas estatais (como os funcionários de refinarias de petróleo), constituíram o núcleo do que seria denominado “velho sindicalismo”.5 Ligados a setores do Estado através da estrutura sindical corporativa e desempenhando um papel indispensável às articulações políticas do regime, esses trabalhadores urbanos ajudaram a construir pouco a pouco – pleiteando seus direitos e interferindo em algumas questões políticas mais gerais – a tradição de classe do proletariado em expansão.

Organizados com relativa autonomia de trabalho nos estaleiros, e sob tutela dos mestres para sua socialização e definição da trajetória profissional, os operários navais lidaram relativamente bem com as inovações técnicas introduzidas.6 Além
disso, desenvolveram nesse período formas de mobilização extremamente eficazes e uma atuação que lhes garantiu conquistas salariais e não salariais, além de uma vivência social e política, sem precedentes. Foi assim que, já em 1957, durante o governo de Juscelino, os operários de estaleiros privados conseguiram sua equiparação salarial com os funcionários de estaleiros autárquicos – exigindo do governo a concessão de um subsídio às empresas particulares que cobriu, de 1957 a 1960, 47% da folha de pagamento dos estaleiros, percentual que subiu, de 1960 a abril de 1962, para 68%, representando, de maio de 1962 a outubro do mesmo ano, quando o benefício foi suspenso, 32% da folha.7

Em junho de 1963, o Contrato Coletivo de Trabalho lhes garantiria direitos ainda mais amplos, válidos até que o movimento militar de 1964 agisse violentamente sobre a categoria e suas organizações. As principais conquistas dessa época foram: o quadro de carreiras, indicando as etapas da hierarquia profissional e o salário-base de cada nível; a elevação da taxa de insalubridade a 35% do salário-

(2 BARSTED, Dennis. Medição de forças: o movimento grevista de 1953 e a época dos operários navais. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. A greve foi também relatada por TELLES, Jover. O movimento sindical no Brasil. Rio de Janeiro: Vitória, 1962.

3 Para uma análise do fenômeno do populismo ver: FERREIRA, Jorge (org.). O Populismo e sua História: de- bate e crítica, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

4 Sobre as orientações da economia no período, ver: LEOPOLDI, Maria Antonieta. Crescendo em meio à incerteza: a política econômica do governo JK (1956-1960). In: GOMES, Angela de Castro (org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 1991, p. 71-99.

5 ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. O Sindicalismo brasileiro entre a conservação e a mudança pós-64. In: SORJ, Bernardo et al (orgs.). Sociedade e Política no Brasil Pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 285.

6 Esse é o argumento desenvolvido por VEIGA, Pedro Motta. Mudança técnica e processo de trabalho na cons- trução naval brasileira. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção). COPPE - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1984.

7 PESSANHA, Elina. Operários navais. Trabalho, sindicalismo e política na indústria naval do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 55.)
base; o pagamento de hora-extra de 100% da hora de trabalho normal; a limitação da jornada de trabalho aos domingos e feriados a 8 horas; a abolição do trabalho normal aos sábados; a limitação da jornada de trabalho semanal a 40 horas; e férias de 30 dias.

O Sindicato era forte [...] Se é p’rá ficar no campo do sindicalismo, dos direitos sociais, nas conquistas sociais, conquistamos a semana de 40 horas, chegamos a conquistas de 35% de insalubridade sobre o salário-base, quando a lei manda pagar 20% do salário-mínimo. E não era só isso, a hora-extra a 100% [...].8

Além disso, esses trabalhadores geralmente relatavam de modo muito positivo a experiência sindical, tanto do ponto de vista da sociabilidade, quanto da inserção no ambiente político da época. 9 O Sindicato de Niterói, por exemplo, promovia muitas atividades recreativas – principalmente na nova sede, construída nesses anos com recursos dos próprios operários, no bairro do Barreto – e encontros sociais, reunindo operários e suas famílias. Eram também organizados vários eventos políticos, com a presença de personalidades nacionais e estrangeiras, como o que manifestou o apoio a Cuba, no final da década de 1950. Os operários navais abrigavam em sua sede e apoiavam trabalhadores de outros setores descontentes com suas condições de trabalho, em processo de resistência ou perseguidos. Participavam de acontecimentos políticos, como a greve de 15 dias pela legalidade, objetivando dar garantias à posse do vice João Goulart na presidência da República, quando da renúncia de Jânio Quadros.

Nós tivemos ganhos, a gente se juntou, se uniu, e foi aquilo que vocês já conhecem. Nós fazíamos greve quase todo ano, e fizemos greve inclusive políticas [...] A Greve da Paridade [...] Também fizemos a Greve da Legalidade, que durou 15 dias. Em todas essas greves participamos ativamente. E havia uma união muito grande, o Sindicato ‘tava sempre cheio de trabalhadores em todas as assembleias.10

A chamada “época dos operários navais” configura, portanto, um período histórico que os trabalhadores recordam com satisfação e orgulho em virtude da importância política de que a categoria inquestionavelmente gozava, mas também pelos “privilégios” sociais desfrutados, como uma vida financeiramente mais folgada, que permitia níveis mais altos de consumo de bens e de serviços.

Ah, tinha muitas vantagens, as vantagens eram grandes [...] quando os marítimos estavam nessa fase, quem era marítimo estava muito bem, e realmente não posso dizer o contrário. Quem entrava p’ra área marítima realmente era bem remunerado, e todos invejavam os marítimos por isso [...] facilidades, do salário ser bem maior. Então era assim uma influência muito grande.11

8 Depoimento de um carpinteiro, nome não identificado, feito a Elina Pessanha, 1984.

9 Dados de entrevistas realizadas com velhos operários entre 1984 e 1985. Os nomes dos entrevistados e seus locais de trabalho foram omitidos para protegê-los da repressão dentro e fora dos estaleiros naquele período.

10 Depoimento de um carpinteiro, nome não identificado, feito a Elina Pessanha, 1984.

Essa época corresponde, por exemplo, aos anos em que os operários ad- quiriram ou construíram casas próprias, levantaram a espaçosa sede do Sindicato, e constituíram-se uma camada privilegiada de trabalhadores urbanos, justificando, inclusive, a adjetivação “de marítimo”, que marcava a melhor qualidade de diversos bens consumidos em seus bairros de moradia.

Eu era sócio dos Operários Navais, desde quando eu entrei em reparos que eu sempre fui sindicalizado [...] Tinha uma força fora de série aquele sindicato lá, dos Operários Naval, tem lá é pagamento e mais pagamento enterrado ali, aquilo ali levou muito dinheiro meu ali. Mas também eu ganhei, né? Eu paguei mas eu levei [...] Eu participei de todas as lutas do Sindicato, todas ela ... era bom mesmo! Eu tinha prazer de ir, né? Porque aquilo ali quando dava reunião ali, quando dava assembléia ali, principalmente para uma paralisação, ônibus não passava ali não, aquilo interditava o trânsito [...] Houve ganhos, inclusivamente eu moro na casa que eu comprei.12

A queda de João Goulart e a tomada do poder pelos militares representou, por tudo isso, um rude golpe sobre esses trabalhadores, com efeitos que afastaram-nos irreversivelmente do enquadramento como marítimos e operários navais, da sede sindical própria e, em inúmeros casos, dos empregos e do trabalho especializado, atingindo assim sua identidade profissional e política.

O golpe de 1964 e os operários navais/metalúrgicos:

repressão e violência

Com o golpe militar de 1964, instalou-se um regime que atendeu às principais reivindicações do empresariado do país no que se referia ao controle da mão de obra, dando-lhe esperanças de que a desejada “estabilidade social e política” a ser implantada, iria propiciar as medidas de saneamento da economia e agilização dos planos da administração pública que favoreceriam seus interesses privados. Entretanto, para os trabalhadores em geral, o golpe representou o fim das perspectivas de ampliação da cidadania e consolidação de direitos por tanto tempo perseguidos. O novo regime voltou as costas aos setores populares, retomando e aprofundando práticas recorrentes de violência física e simbólica contra eles.

É possível dizer que o golpe de 1964 atingiu de forma especialmente perversa a categoria dos operários navais, e isso de várias maneiras. Em primeiro lugar, a sede do Sindicato dos Operários Navais, localizada no bairro do Barreto, em Niterói, foi invadida por soldados da Polícia Militar e teve suas instalações destruídas, como relatou o trabalhador do Lloyd Brasileiro, Irineu José de Souza, um dos líderes da greve dos marítimos de 1953:

O Sindicato foi depredado. O que fizeram com a nossa sede foi um vandalismo. Eles quebraram poltrona, quebraram vaso sanitário, quebraram máquina de escrever, quebraram até máquina de costura. Naquela época nós tínhamos curso de corte e costura aqui no Sindicato. Quer dizer, foi uma destruição total. Mas como se isso não bastasse, eles pegaram a picareta e foram ali no assoalho do salão e picotaram aquele(
12 Depoimento de um maçariqueiro, nome não identificado, feito a Elina Pessanha, 1985.)
friso todo para saber se tinha metralhadora lá em baixo. É brincadeira? Guardar metralhadora! 13

Paralelamente, os militares começaram uma verdadeira caçada às lideranças sindicais, acusadas indiscriminadamente de “comunistas” e inimigas do regime. Muitos trabalhadores foram presos e sofreram tortura física e psicológica. Irineu de Souza, na mesma entrevista citada acima, conta que logo depois do golpe foi inicialmente levado ao Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e depois encarcerado nos navios Princesa Leopoldina e Custódio de Melo.14 Sobre alguns de seus companheiros, relatou que foram presos do jeito que estavam na ocasião (sujos e de macacão), colocados dentro de uma lancha e levados. De fato, houve várias prisões no interior dos estaleiros, invadidos por grupos de fuzileiros navais.

Benedito José dos Santos, ex-presidente do Sindicato dos Operários Navais, hoje com mais de 80 anos, relatou em seu depoimento que, seis dias depois do golpe, foi preso e levado para o Departamento de Ordem Política (DOPS) de Niterói, onde sofreu espancamentos. Transferido, após dois dias, para o Centro de Armamento da Marinha, no bairro de Ponta d’Areia, foi cruelmente torturado até que, ferido, foi transportado para o presídio na Rua Frei Caneca, no centro do Rio. “Eles diziam que queriam saber onde estavam as armas do Sindicato. E não tinha arma alguma.” No presídio ele ficou por mais de um mês, sendo em seguida levado para o Estádio Caio Martins, em Niterói, onde com cerca de 500 outros presos permaneceram por mais dois meses: “O Caio Martins foi o primeiro campo de futebol que se transformou em presídio. Niterói inaugurou essa novidade nefasta. Dormíamos no chão, sem colchonete, cobertores, e éramos humilhados”.15

Foi comum também abrir inquéritos contra trabalhadores denunciados, que muitas vezes eram interrogados no interior das próprias empresas. 16

A gente ficava todos os dias respondendo às mesmas perguntas de um tenente. […] ‘Você participava das reuniões no sindicato? ‘Todas’. ‘Participou de alguma reunião em que se falasse de Cuba?’. ‘Participei’. ‘Você viu algum líder comunista nestas reuniões?’. ‘O que eu via lá eram trabalhadores’. ‘Quem ia com você?’. ‘Eu costumava ir sozinho ou com a massa’. ‘Sabe o nome de alguém?’. ‘Além dos trabalhadores do Estaleiro Mauá, tinha também os do Caneco, do Saneamento’. ‘Não tem um companheiro em particular?’. ‘Não existe particularidade nisso aí. Todo mundo é companheiro’. Eu sempre tive a cautela de não citar nome de ninguém. Depois a gente até se orgulhou disso, porque os nomes que foram citados nestas indagações foram presos, passaram por humilhações, espancamentos, alguns desapareceram e até hoje a gente não sabe onde estão.17

As punições afastaram provisória ou definitivamente inúmeros trabalhadores do exercício de sua função: muitas prisões, desaparecimentos, demissões e o uso do expediente de colocar em “disponibilidade” os operários que gozavam(

13 GOMES, Angela de Castro (org.). A Época dos operários navais. Niterói: Laboratório de História Oral e Ico- nografia – LABHOI, Universidade Federal Fluminense, 1999, p. 54.

14 No navio Princesa Leopoldina estavam também, segundo Irineu, Miguel Arraes e os líderes sindicais Almir Resneki, do Sindicato dos Rodoviários, e Durval Vieira de Souza, do Arsenal de Marinha. Idem, p. 52.

15 O Globo, “Comissão Municipal da Verdade começa a ouvir depoimentos”, de 23 de junho de 2013, edição on line.

16 GOMES. A Época dos operários navais, p. 96.

17 Depoimento de Rosalvo Constâncio Felippe ao LABHOI, em 1° de dezembro de 1996 e 1° de março de 1997.)

de estabilidade,18 atingiram, indiscriminadamente, aqueles que trabalhavam em estaleiros privados ou empresas estatais. Sem trabalhar, os “disponíveis” recebiam apenas o salário-base e perdiam o adicional de insalubridade e o pagamento por horas-extras, complementos substanciais de sua renda.19

Por outro lado, em julho de 1964, o Ministério do Trabalho alterou o enquadramento sindical dos operários da construção naval, transferindo-os para a “categoria profissional de metalúrgicos” e retirando-os do âmbito da Federação dos Marítimos. Além disso, fragmentou a categoria, antes reunida num sindicato de base regional, dispersando-a por sindicatos metalúrgicos municipais. No caso dos estaleiros da Baía de Guanabara, os trabalhadores passaram obrigatoriamente a ser representados por dois diferentes sindicatos, o Sindicato dos Metalúrgicos de Niterói e o Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro.

No primeiro caso, uma entidade formada por operários de pequenas firmas de metalurgia e que foi fortemente impactada pela entrada dos trabalhadores da indústria naval, que logo assumiriam sua direção.20 No caso do Rio de Janeiro, um sindicato maior, para o qual os antigos operários navais não quiseram ir num primeiro momento, mas onde finalmente passaram a atuar como mais um grupo expressivo de trabalhadores, posteriormente destacado como “seção naval” da associação. Também neste último sindicato, com uma longa e combativa história de conquistas políticas, os “navais” viriam a ocupar, anos mais tarde, e por várias vezes, a direção sindical.21

A partir de 1964, continuariam como “operários navais” apenas os que trabalhavam “embarcados” em navios, os empregados em empresas de navegação e nos seus estaleiros de reparos, fator que acentuou a fragmentação dos “marítimos”. O Contrato Coletivo de Trabalho de 1963, resultado de tantas lutas e greves, perdeu sua validade e, mesmo que algumas conquistas tenham sido formalmente mantidas, sua aplicação ficou ao sabor de contratos individuais de trabalho impostos aos trabalhadores remanescentes.

Para completar esse quadro, em 1966, a lei nº 5.107 instituiu o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), atendendo a uma antiga reivindicação do patronato. Esse foi sem dúvida um dos mais duros golpes sobre os trabalhadores, inclusive os operários da indústria naval, por retirar-lhes na prática a garantia de estabilidade no emprego, facilitando de modo irreversível as demissões sem justa causa.22 Em ...

(18 Os trabalhadores com vínculo formal de trabalho adquiriam legalmente, após dez anos, a estabilidade no

emprego, com direito a uma indenização mais alta em caso de dispensa, o que os patrões queriam impedir.

19 A difícil e indefinida situação dos “disponíveis”, me foi detalhadamente relatada por um deles, Artur Braga, um antigo trabalhador da Companhia Nacional de Navegação Costeira, empresa de navegação fundada pela família Lage em 1891 e mais tarde encampada pelo Estado.

20 O atual Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Ni- terói e Itaboraí (aqui nomeado Sindicato dos Metalúrgicos de Niterói), existia desde 1933. Foi o primeiro sindicato do Rio de Janeiro a se filiar à Central Única dos Trabalhadores (CUT), quando já era dirigido por um metalúrgico/operário naval, Abdias José dos Santos, na década de 1980.

21 O Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico do Rio de Janeiro (aqui nomeado Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro) foi fundado em primeiro de maio de 1917. Localizado no bairro de São Cristovão, foi palco da famosa assembleia dos marinheiros, às vésperas do golpe militar de 1964. Teve sua sede igualmente invadida e destruída nos dias que se seguiram ao golpe. Para a entrada dos operários navais no Sindicato do Rio e o desenvolvimento de suas atividades sindicais desde então, ver: PEREIRA, Luisa Barbosa. Navegar é preciso: sindicalismo e judicialização ativa dos tra- balhadores da indústria naval carioca. Tese (Doutorado em Sociologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia - UFRJ, Rio de Janeiro, 2014.

22 Ainda hoje os trabalhadores brasileiros estão desprotegidos nesse sentido, apesar de a Constituição de 1988, em seu artigo 7º, considerar “a relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária ou sem justa causa”, preceito que não foi, entretanto, regulamentado por lei. Por outro lado, o Brasil não é signa- tário da Convenção 158 da OIT, que disciplina as condições de demissão.)

...função de todas essas medidas, o clima de insegurança, medo e ameaças atingia todos os trabalhadores:

Ficaram todos caladinhos, ninguém dizia mais nada, não queria ‘papo’, nem protestar, nem coisa nenhuma. Os operários navais nos metalúrgicos, eles... muitos deles ficaram dispersos, outros fugiram, sumiram por aí com medo da repressão. Aí não deu mais, ficou muito desorganizado. Mas em algum canto, quando a gente encontrava uma pessoa conhecida, a gente conversava.23

Com o enrijecimento politico da ditadura, após 1968, a repressão acentuou- se ainda mais, como continuou descrevendo o trabalhador acima entrevistado:

Em 68, aí, a coisa ficou pior do que era [...] de 68 a 74 o período mais terrível, seis anos terríveis, período Médici [...] Existia [...] uma pressão dos patrões sobre os operários. Eles faziam por todos os meios da pessoa não se sindicalizar, a pessoa era ameaçada, ainda hoje ameaça, quanto mais naquele tempo. [...] Até 77 a situação se manteve muito vigilante, os patrões muito ligados, reprimindo. Na medida em que via qualquer movimento dentro da empresa, o pessoal era demitido assim sumariamente, perseguido, ameaçado até de ser enquadrado na Lei de Segurança.24

Dentro dos estaleiros, liberados finalmente para se “modernizarem”, os trabalhadores foram objeto de um processo que visava também “reenquadrá- los” como profissionais dessa nova indústria naval progressivamente privatizada e parcialmente internacionalizada e ansiosa por funcionar de acordo com padrões capitalistas mais avançados.

Na vigência do Plano de Emergência para a Construção Naval (1967-1970), uma “nova” mão de obra foi sendo progressivamente formada, sob a supervisão do Arsenal de Marinha e de técnicos japoneses ligados ao estaleiro Ishibrás. Na CCN- Mauá, uma grande parte dos trabalhadores foi ressocializada para as novas funções, sob as normas inovadoras de controle e organização do processo de trabalho, mas também com procedimentos altamente disciplinadores e repressivos.

A formação artesanal mais lenta, conduzida pelos mestres, foi substituída por formas mais ágeis de aprendizado nas escolas da empresa ou no SENAI. As equipes foram reduzidas, profissionais passaram a acumular tarefas antes distribuídas com seus auxiliares ou aprendizes, o controle da produção saiu, em grande parte, das mãos dos mestres e contramestres para novos atores mais ligados à gerência da empresa. Cresceu o setor de preparação do trabalho, reforçou-se o papel das equipes de controle de qualidade dos produtos – órgãos autônomos – com o objetivo de retirar, cada vez mais, o poder dos trabalhadores sobre a condução do processo de trabalho.

Com o 1º Plano da Construção Naval, lançado em 1970, e a necessidade de um fluxo regular de produção, a exploração da mão de obra aumentou ainda mais. Intensificou-se o ritmo de trabalho e o uso das horas-extras, fortaleceu-se o controle e o planejamento da produção. Agregadas à gestão social da força de trabalho

(18

23 Depoimento de um bombeiro, nome não identificado, feito a Elina Pessanha, 1984.

24 Idem.)

OS OPERÁRIOS NAVAIS DO RIO DE JANEIRO SOB A DITADURA DO PÓS-1964: REPRESSÃO ...

conduzida pelo Estado autoritário – baseada fundamentalmente na instabilidade (o FGTS), no arrocho salarial e na intolerância política –, essas mudanças configuravam o quadro predominante nas empresas do setor. Tal associação de fatores permitiu que o volume de produção e a extração de mais-valia crescessem extraordinariamente nesse período: a produção aumentava e o número de empregos não.

Em 1974 foi lançado o 2º Plano da Construção Naval, com encomendas e recursos financeiros (3 bilhões de dólares), que representavam o triplo do 1º PCN. Esse segundo plano se inseria, por sua vez, no 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), elaborado pelo governo de Ernesto Geisel para expandir setores industriais de base e fazer o país avançar economicamente.25 Caracterizou-se igualmente pela expansão do processo de automação, pelainstalação de indústrias de equipamentos e máquinas para navios, pelo funcionamento de escritórios de projetos ligados às empresas e pela introdução do uso do computador para o controle dos fluxos de material e de produção. Essas mudanças de fato propiciaram uma expansão sensível do setor, levando o Brasil à segunda posição (abaixo apenas do Japão), em volume de encomendas, no quadro internacional da produção naval do final da década de 1970, chegando a empregar quase 40 mil trabalhadores.

Gerações operárias: continuidades e rupturas

Metalúrgicos à força, os operários dessa nova indústria naval, após um

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período de natural dispersão, foram tentando lentamente retomar sua autonomia profissional e coesão política. E foi “por dentro” desse processo que se pôde observar o papel desempenhado pelo contato entre as diferentes gerações de operários da indústria naval.

As mudanças econômicas e políticas operadas pelo golpe de 1964, reformulando as relações de trabalho, com consequências na esfera da reprodução, foram vivenciadas pelos operários mais antigos, sobretudo como perda de expressivas conquistas coletivas. Sua cultura política era marcada por uma forte presença do Estado e pela noção de “direitos”, bases importantes para a articulação de reivindicações e a definição de conquistas trabalhistas, garantidas pela legislação.

Quanto à sua participação sindical, em primeiro lugar, estava informada por uma história muito rica, caracterizada desde a origem por iniciativas de resistência de classe, passando por vários modelos de associativismo, nos quais a sua condição de profissionais específicos do setor naval continuou predominando. Em segundo lugar, a ação sindical que esses trabalhadores desenvolveram no período pré-64, apoiada numa articulação entre o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), sempre aliou atuação e influência mais estritamente políticas (do Sindicato para fora) a práticas de resistência fabril bem-sucedidas (sob orientação dos “conselhos sindicais” formados nos locais de trabalho). 26

Significando objetivamente a exclusão dos trabalhadores do novo pacto social articulado no Estado, o golpe militar teve o efeito simbólico de divisor de águas, redefinindo, nas representações dos operários, o peso e o papel do Estado(
25 O Programa Naval da época era considerado prioritário, devendo contar com um sistema de financia- mento específico. LESSA, Carlos. A estratégia do desenvolvimento, 1974-1976. Sonho e fracasso. Brasília: Funcep, 1988, p. 20.

26 Sobre a colaboração política entre o PCB e o PTB nos sindicatos, ver especialmente: SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Boitempo/UniRio, 2001.)

e as maneiras legítimas de participação política. A perda de direitos duramente conquistados pelos mais velhos sintetizava, de maneira perversa, a nova relação entre Estado, empresariado e classe trabalhadora.

Esses marcos externos combinaram-se com os diferentes processos de socialização impostos na fábrica, decorrentes de mudanças no processo de gestão da força de trabalho e influentes, sem dúvida, na caracterização da nova geração de trabalhadores. Implicando em novas formas de recrutamento e formação profissional, essas mudanças tenderam a gerar operários com novo perfil e com experiências distintas no que se refere às relações com as empresas.

Mas o que se observou foi que o processo permanente de socialização profissional e política conduzido pelos operários mais velhos funcionou como um elo de ligação entre as experiências das gerações. A cultura fabril desempenhou um papel privilegiado como canal de transmissão da memória coletiva, em que a crença no valor moral do trabalho tinha um lugar de destaque. De fato, percebemos, principalmente entre os “velhos”, uma forte valorização do trabalho, isto é, uma ética do esforço pessoal e da disciplina, prova de virilidade e de coragem diante das duras condições de trabalho. Associada frequentemente ao orgulho profissional, esta ética fundamentava, de outra parte, uma economia moral de expectativa de “direitos”, núcleo importante de uma cultura política comum.

Distintos em suas características de trabalho e atuação política mais salientes, os operários das novas gerações não deixaram de reconhecer, de uma parte, a importância renovada, para além da escola profissional empresarial, da formação artesanal transmitida pelos companheiros mais experientes, que ensinavam também como conviver com as tarefas perigosas e insalubres.

Eles botava você nos primeiros meses como ajudante de um profissional já tarimbado. Eu pegava como ajudante de um rapaz que já era profissional, aí com ele ia me habituando, entrando no esquema, porque nunca é como a teoria. As coisas, assim, na prática, o que vai fazer sempre tem alguma dificuldade.27

Outros operários destacavam igualmente a contribuição dos mais velhos no processo de construção do Sindicato e de luta por direitos fundamentais. Resguardavam-se assim, elementos considerados significativos da tradição, que funcionavam como referenciais de ação política sempre que necessário.

Dentro da fábrica, eu sempre procurei conversar com a velha guarda, com as pessoas que podiam me passar uma experiência [...] As histórias que me contavam dos movimentos que houve, que envolvia aqueles operários navais da época, tudo isso. Porque eu tinha certeza que o cara da minha idade [...] sabia tanto quanto eu, principalmente naquela fase que ninguém falava nada, ninguém abria a boca [...] Então eu procurei me informar pelas pessoas de maior idade [...] Foi com elas que eu aprendi.28

A recuperação do contato entre as gerações operárias revelou, ainda, as relações entre a atuação sindical do “velho sindicalismo” e as novas experiências de reação dos trabalhadores que, identificados especialmente com o que ocorria(

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27 Depoimento de um montador, nome não identificado, feito a Elina Pessanha, 1984.
28 Depoimento de um montador, nome não identificado, feito a Elina Pessanha, 1985.
OS OPERÁRIOS NAVAIS DO RIO DE JANEIRO SOB A DITADURA DO PÓS-1964: REPRESSÃO ...)

na região do ABC paulista, proliferariam daí por diante pelo país. Talvez no Rio de Janeiro tenha se apresentado de modo mais claro – em virtude da presença de setores mais combativos do movimento sindical no pré-64 –, do que em São Paulo, a continuidade entre o “velho” e o “novo” sindicalismo que, no caso dos operários da indústria naval, se expressou na presença colaborativa dos grêmios de veteranos nos sindicatos e mesmo na participação dos trabalhadores mais antigos em chapas concorrentes às eleições sindicais. Tais relações não obscureciam, entretanto, a particularidade das situações vividas, nem tampouco o fato de que muitas vezes as atuações de “velhos” e “novos” operários eram, por eles mesmos, comparadas e criticadas.29

Crise e retomada da indústria naval: a resistência operária

O fim do governo Geisel, em 1979, revelava os sinais de esgotamento do regime autoritário e anunciava o projeto “lento e gradual” de distensão política. Dentro dos estaleiros, a consolidação das mudanças tecnológicas introduzidas e dos novos padrões de controle da mão de obra começaria a gerar reações. No início do governo João Figueiredo, ocorreu no Rio de Janeiro a primeira greve dos trabalhadores do setor depois de 1964, resultado da movimentação fabril e do trabalho político das chamadas “oposições sindicais”.

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Em Niterói, em 1980, setores oriundos desse movimento nas fábricas e articulados com o “novo sindicalismo” venceriam as eleições sindicais, deslocando grupos que controlavamosindicatohácerca de dez anos.30 Muitosintomaticamente, as principais reivindicações da categoria incorporavam a retomada dos direitos perdidos pelos operários navais com o golpe de 1964, principalmente os referentes à carreira, às taxas de insalubridade, à remuneração das horas-extras e à jornada de trabalho. A partir daí, o trabalho sindical se expandiria ainda mais dentro das empresas, com greves e manifestações se sucedendo.

Após um longo período de controle autoritário, em que a movimentação sindical foi violentamente inibida com a perspectiva de abertura política – datam dessa época a Anistia Política e a Reforma Partidária –,31 os trabalhadores de todo o país desafiavam a política salarial do governo, associando-se e realizando greves.32 Ao formar foros de debate, a classe trabalhadora lançava os embriões das futuras centrais sindicais, vinculando-se a – e até criando, como no caso do Partido dos Trabalhadores – partidos políticos. Sustentava assim um processo de resistência que os operários navais/metalúrgicos do Rio de Janeiro ajudavam a fortalecer.

29 PESSANHA, Elina e MOREL, Regina. Gerações operárias: rupturas e continuidades na experiência de me- talúrgicos do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: vol. 17, p. 68-83, 1991. Ver também: MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998; MALTA, Regina Helena. O Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro nos anos 1980. In: RAMALHO, José Ricardo e SANTANA, Marco Aurélio. Trabalho e tradição sindical no Rio de Janeiro: a traje- tória dos metalúrgicos. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 249-296.

30 Abdias José dos Santos foi eleito presidente do sindicato, e exerceu o mandato por 3 vezes. Foi também tesoureiro na primeira diretoria da CUT .

31 A Anistia Política foi aprovada, com muitas limitações, pela lei nº 6.683, de 1979. A reforma partidária, de- finida na lei nº 6767, também de 1979, embora liberasse a formação de partidos políticos mantinha o PCB na ilegalidade.

32 Para a análise dos ciclos de greves no país, ver: NORONHA, Eduardo. Ciclo de greves, transição política e estabilização - Brasil, 1978-2007. Lua Nova, São Paulo, vol. 76, p. 119-168, 2009.

A crise econômica mundial decorrente dos “choques do petróleo”33 teve, entretanto, efeitos fortes sobre essa organização, quando se manifestou abertamente no Brasil, durante a década de 1980, causando recessão e, em decorrência, desemprego massivo. Sobre a indústria naval, em particular, apesar dos dois Planos Permanentes da Construção Naval (1980 e 1982), as consequências foram devastadoras. Depois de 1981, as demissões de operários do setor começaram a se tornar mais frequentes e o nível de emprego caiu significativamente (quase 50% de 1979 a 1984), como revelam os dados sobre a evolução da força de trabalho.

Tabela 1 – Evolução da força de trabalho na indústria da construção naval (1979-1984)

ANO

EMPREGADOS

1979

39.155

1980

33.792

1981

34.472

1982

33.469

1983

26.180

1984

21.000

Fonte: Sinaval (Sindicato Nacional das Indústrias de Construção Naval)

Extremamente dependente do Estado em termos de encomendas e de recursos para a construção de navios, o setor foi atingido ainda pelos efeitos de um processo de investigação sobre suspeitas de irregularidade envolvendo empresas, orgãos do governo e sistema bancário na administração de empréstimos e dívidas. O chamado “escândalo da SUNAMAM”, que levou o proprietário do estaleiro Mauá ao suicídio no início de 1985, culminou na transferência do sistema de financiamento à indústria naval, operado anteriormente por aquela autarquia, para o BNDES.34

Depois que a eleição indireta de um presidente civil, Tancredo Neves, em 1985, anunciou o fim da ditadura militar, greves, manifestações e atos públicos sucederam-se, e o trabalho na porta dos estaleiros, de arregimentação política, era praticamente diário. O gosto dessa luta, que perdurou na segunda metade dos anos 1980, guardava, porém, um travo amargo de preocupação e desesperança daqueles que seriam, em última instância, as maiores vítimas dessa crise.35

Apesar da queda formal da ditadura, com a aprovação da Constituição de 1988, a situação de decadência da indústria naval avançava e praticamente dizimaria, sob os governos de inspiração neoliberal que atravessaram a década de 1990,36 todo o acúmulo de recursos materiais, tecnológicos e humanos, que se constituíra em torno do setor. Mesmo com a formação de uma Câmara Setorial para o setor naval, aceita só por parte do movimento sindical da categoria, o acordo assinado em 1993 não produziu efeitos permanentes.37 Por outro lado, o recurso à Justiça do Trabalho

22

33 A referência aqui é aos “choques do petróleo” de 1973 e 1979, cujos efeitos alcançariam tardiamente o Brasil e seu processo de endividamento externo, em grande parte envolvendo a indústria naval.

34 Jornal do Brasil, Sunamam bloqueia novos créditos com a sua dívida, e Bancos querem pagamento de toda dívida de Estaleiros, 25 de janeiro de 1985, p. 1 e 19. E também: Jornal do Brasil, “Caso SUNAMAM leva Ferraz ao suicídio”, 8 de fevereiro de 1985, p. 1.

35 PESSANHA, Elina. As Grandes Vítimas da Crise na Indústria Naval, Jornal do Brasil, 5 de abril de 1985, p. 11.

36 Ver: CARDOSO, Adalberto. A década neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2003. Para as perdas no plano dos direitos do trabalho ver: KREIN, José Dari. As relações de trabalho na era do neoliberalimo no Brasil. São Paulo: LTR, 2012.

37 DINIZ, Eli. Reformas econômicas e democracia no Brasil dos anos 90: as Câmaras Setoriais como fórum de negociação. Dados. Rio de Janeiro: vol. 2, n° 37, p. 277-315, 1994.

OS OPERÁRIOS NAVAIS DO RIO DE JANEIRO SOB A DITADURA DO PÓS-1964: REPRESSÃO ...

na defesa de direitos se estreitaria enormemente no período, graças a um processo

de “autolimitação” da atuação dos tribunais nos casos de ações coletivas.38

Estaleiros chegaram a ser fechados (como o Caneco, no Rio) ou arrendados (o caso do Mauá, em Niterói), e muitos “trabalhadores sem fábrica” - operários navais altamente especializados demitidos - teriam dificuldade de se empregar em outras empresas metalúrgicas e se tornariam vendedores ambulantes (camelôs), como tantos desempregados do país. Com a decadência do setor, o próprio segmento empresarial do Rio de Janeiro, por sua vez, perdeu a liderança e o controle da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), dirigida por esses empresários há décadas.

Tabela 2 – Volume de produção e número de trabalhadores (1990-1998)

ANO

EMPREGADOS

TPB CONTRATADAS

1990

13.097

440.000

1996

5.562

65.120

1997

2.641

138.000

1998

1.880

6.000

Fonte: Sinaval (Sindicato Nacional das Indústrias de Construção Naval)

Esse quadro só foi revertido no decorrer dos anos 2000, quando novas orientações da economia e uma luta política contínua e articulada, envolvendo trabalhadores, empresários e setores dos governos federal e estadual levaram o setor, principalmente a partir de 2003, a recuperar sua importância industrial, expandir-se pelo território nacional e recriar empregos.39 A valorização da fabricação nacional de navipeças e a concentração de encomendas pela empresa estatal Petrobrás - em fase de extraordinária expansão dos campos petrolíferos - aos estaleiros brasileiros, salvaram a nossa indústria naval da completa derrocada e a recolocaram, com a crescente construção de plataformas e diversos navios, entre os grandes produtores navais do mundo. Muito significativamente, o primeiro navio construido com recursos do Programa de Modernização e Expansão da Frota (PROMEF), de 2005, recebeu o nome de Celso Furtado, o economista punido pelo golpe militar de 1964.

Nos dias atuais, embora com um cenário economicamente mais positivo e politicamente mais democrático, os desafios permanentemente postos pelas relações industriais capitalistas à condição operária, obviamente persistem. Mas a tradição sindical e a memória do passado combativo, que ajudaram a resistir ao golpe de 1964, continuam, como pode ser atestado por alguns estudos mais recentes,40 sendo acionadas para mobilizar aqueles que se sentem – hoje, como sempre – operários navais.

Recebido em: 16/02/2014 Aprovado em: 06/04/2014

38 O Tribunal Superior do Trabalho (TST) baixou, em 1993, uma série de orientações processuais no sentido de inibir a recepção, pelos vários níveis da justiça, dos dissídios coletivos trabalhistas, que eram extintos sem julgamento do mérito. Essas medidas só foram suspensas em 2003.

39 Nesse processo, o posicionamento político do governo de Luíz Inácio Lula da Silva foi fundamental. Ver: JESUS, Claudiana Guedes de e GITAHY, Leda. Transformações na indústria da construção naval brasileira e seus impactos no mercado de trabalho (1997-2007). Trabalho apresentado ao 1º Congresso Redes e Desen- colvimento Regional de Cabo Verde. Cabo Verde: Anais do Congresso, 2009, p. 3898-3916.

40 Ver: PEREIRA, Luisa Barbosa. Justa causa para o patrão: a relação entre o Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de

Janeiro e a Justiça no caso Sermetal. Rio de Janeiro: Multifoco, 2012.

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