sábado, 16 de setembro de 2023

Cracolândia e subjetividade * Frei Betto-SP

Cracolândia e subjetividade
Frei Betto - SP

Várias cidades brasileiras já possuem redutos onde os usuários de crack se reúnem: as Cracolândias. Na capital paulista está localizado na região central. Em Brasília no “Buraco do Rato”, no Setor Comercial Sul. Em Fortaleza, no bairro Moura Brasil.
Em São Paulo, onde moro, reúne cerca de duas mil pessoas por dia. Uma investigação recente da Universidade Federal de São Paulo mostrou que 43% dos consumidores estão lá por conflitos familiares, 9,5% por violência doméstica e 7% por pobreza extrema.

Tanto a prefeitura quanto o governo do estado têm tentado aplicar diversas medidas para erradicar a Cracolândia. Tudo ineficaz. É fato que os consumidores prejudicam o comércio local, dificultam a circulação de moradores e veículos e sujam as ruas.
Como o capitalismo adota uma lógica analítica e, portanto, só atua sobre os efeitos dos fenômenos, as medidas tomadas pelo poder público são apenas paliativas. Uma delas é o combate ao tráfico de drogas, que é como arar o mar. Se a repressão às drogas funcionasse, os Estados Unidos não seriam o maior mercado mundial para o consumo de drogas ilícitas. De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças daquele país, mais de 100 mil americanos morreram de overdose em um ano durante a pandemia.

Sou a favor da descriminalização das drogas e da aprovação do seu uso controlado, desde que todo o processo, desde a fabricação até o consumo, seja gerenciado pela saúde pública e tenha como objetivos libertar o usuário da dependência e erradicar o vício.

Enquanto isso, quero voltar aqui ao que disse em Salvador aos quase 1.500 profissionais do Serviço Único de Assistência Social no dia 14 de agosto, durante o 230º Encontro Regional Nordeste dos Conselhos de Secretários Municipais de Assistência Social (CONGEMAS).

Uma das medidas errôneas adotadas pelo poder público paulista foi hospedar consumidores em hotéis. Essas pessoas vivem na miséria. E eles precisam de dinheiro para alimentar o vício. Resultado: os hotéis foram saqueados: arrancaram as pias dos banheiros, as luminárias do teto e as cadeiras dos quartos para vendê-los e obter recursos. Se as autoridades tivessem um pouco mais de conhecimento sobre a história da assistência social, saberiam que na década de 1950, na Cruzada de São Sebastião no Rio, moradores de favelas transferidos para prédios no Leblon “desmontaram” os apartamentos para ganhar dinheiro.
Qual é a solução? Um deles está no fator pedagógico, no resgate da autoestima de quem frequenta a Cracolândia. Como a polícia os trata? Tão indesejado, cruel, sem-teto e nojento. E os comerciantes e vizinhos? Da mesma forma que a polícia, como um incômodo. Como a assistência social os trata? Como seres anônimos e invisíveis, meros objetos desprezíveis do trabalho burocrático?

Mas é um grupo de pessoas. Lá cada ser humano tem nome, família, história de vida. Ele não merece ser considerado um mero “vicioso” ou, como canta Chico Buarque, “E tropeçou no céu como se fosse um bêbado / E voou no ar como se fosse um pássaro / E acabou no chão como um pacote mole / Morreu no meio do passeio público / Morreu na contramão, atrapalhando o trânsito.”

Se usam drogas é porque não suportam a sua realidade, como acontece com qualquer pessoa dependente de produtos químicos. Todo viciado em drogas é um místico em potencial. Alguém que descobriu a verdade: a felicidade é uma experiência subjetiva. Não é o resultado da soma de prazeres, como a sociedade de consumo tenta nos convencer. Nem de uma grande conta bancária ou dos títulos que a pessoa detém (e aos quais se agarra como um carrapato na pele), porque quando perde os títulos ou o cargo fica deprimido por falta de autoestima suficiente. Ele precisa de condecorações para fazer brilhar sua presença no mundo, como fazem inúmeros políticos. Poucos são os que, como Fidel Castro, têm a ousada humildade de exprimir na sua vontade a expressa proibição de que ruas e avenidas, universidades e hospitais tenham o seu nome, ou que estátuas, placas e monumentos lhe sejam dedicados.

A diferença entre o místico e o drogado é que o primeiro entra pela porta do Absoluto e o segundo, pela porta do absurdo.
Quem lida com moradores de rua precisa de formação pedagógica. Deveis saber como abordá-los, respeitando a sua dignidade, os seus direitos humanos e o seu estatuto de filhos e filhas de Deus. É preciso ter paciência, saber ouvir, deixar que cada pessoa conte sua história familiar e profissional e expresse seus sonhos e desejos. Somente por meio desse processo “terapêutico” paulofreireano é possível ajudá-los a tomar a iniciativa de se tratar, abandonar o vício e mudar de vida.
É graças à autoestima que uma pessoa se sente feliz e realizada, seja ela um faxineiro, um astrofísico, um operador de máquina ou um zelador de prédio. A pessoa precisa sair da invisibilidade, sentir-se reconhecida socialmente, útil, enfim, cidadã. A política de descarte e repressão só agrava os sentimentos de rebelião e humilhação.

As Cracolândias não podem ser tratadas como casos policiais: são casos políticos.

Frei Betto é autor, entre outros livros, do romance policial Hotel Brasil (Rocco).
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