domingo, 15 de outubro de 2023

Conservadorismo e intoxicações identitárias * Hudson Carvalho/Agenda do Poder

Conservadorismo e intoxicações identitárias
Hudson Carvalho*
 
As diatribes e guilhotinas identitárias em nada contribuem para os esforços dos avanços civilizatórios. 

Recentemente, veio à luz a abrangente sondagem “A Cara da Democracia”, do Instituto da Democracia, com pesquisadores das universidades Uerj, Unicamp, UnB e UFMG. Na mídia, alguns ressaltaram, com certo espanto, o indicativo de posições conservadoras de parcelas expressivas do eleitorado de Lula em 2022, tidas, uniformemente, como “progressistas”. Faz-se equívoco recorrente da burguesia iluminista achar que todos os eleitores de Lula são vanguardistas. O triunfo eleitoral sustentou-se, sobretudo, no apoio consistente de segmentos sociais desfavorecidos desideologizados, de viés naturalmente tradicionalista e temente a Deus, notadamente do Nordeste. Gente que se identifica, epidermicamente, com Lula e se beneficiou em seus governos passados. E houve ainda o contingente de conservadores arrependidos ou pávidos com Bolsonaro. Em suma, ter votado em Lula não valida alguém, automaticamente, como lulista, progressista ou esquerdista. Lula não ganhou por posar de esquerdista ou progressista; venceu a despeito disso, com a essencial ajuda do desqualificado Bolsonaro.

O Brasil está cada vez mais à direita, principalmente pela expansão evangélica e pela transformação tecnológica e cultural no mercado de trabalho, com o fortalecimento do empreendedorismo individual em detrimento das funções coletivizadas e sindicalizáveis. Como se sabe, o moderno setor agropecuário, de alta mecanização, consolidou-se o mais pujante economicamente no país. Após o trauma da ditadura militar, a direita, acabrunhada, encovilou-se. Com Bolsonaro, libertou-se e se assanhou, a ponto de 22% assumirem-se como de extrema direita, conforme a pesquisa “A Cara da Democracia”. Já 11% dos inquiridos aboletam-se na extrema esquerda. Isto é, um terço dos brasileiros encontra-se radicalizado em uma ponta ou outra, protagonizando a presente insanidade infértil. Não obstante as suas agruras, Bolsonaro continua como a grande referência para a direita. Surrealisticamente, 5% dos brasileiros se dispõem a doar dinheiro para ele quitar as suas multas, decorrentes de diversos desatinos.

A direita tornou-se a ideologia majoritária no país, e a percepção conservadora se impõe no campo dos valores. Nos temas clássicos da cartela de princípios – aborto, drogas e casamento gay -, “bolsonaristas” e “lulistas” só diferem substancialmente no último quesito; 60% dos “lulistas” o aceitam, enquanto 69% dos “bolsonaristas” o rejeitam. De acordo com o levantamento “A Cara da Democracia”, 79% dos pesquisados manifestam-se contra a legalização do aborto e 70% condenam a descriminalização das drogas. No universo “lulista”, esses índices atingem, respectivamente, 77% e 71%. Além disso, 62% dos “lulistas” defendem a redução da maioridade penal. No mais, para 19% dos “lulistas”, tanto faz um regime democrático ou não democrático. E adicionais 14% admitem a adoção de uma ditadura, em certas circunstâncias. Ou seja, 33% dos “lulistas” relativizam a democracia, contra 40% dos “bolsonaristas”; diferença, proporcionalmente, pequena. Existem também mais “lulistas” do que “bolsonaristas” pendurados na estapafúrdia crença da terra plana – 28% a 20%. Esses números evidenciam, cabalmente, que, afora a acachapante primazia conservadora, é uma imprecisão avalizar como “progressista” a totalidade dos votantes em Lula no pleito passado. Por outro lado, os “bolsonaristas” são, inequivocadamente, conservadores – e muitos até reacionários.

O conservadorismo no Brasil arquiteta-se constitutivo, vem da nossa formação histórica. Atualmente, convulsionou-se, primordialmente, pelas guerras culturais e intoxicações identitárias. Há pouco, um episódio na Universidade Federal da Bahia (UFBA) ilustrou a disenteria identitária, que tanto anima e tonifica a direita. Como dizia Leonel Brizola, inspirado no saudoso Darcy Ribeiro, “esta é a esquerda que a direita gosta”. Uma aluna trans acusou a professora de transfobia, unicamente por tratá-la pelo adjetivo masculino “chateado”, em vez de “chateada”, como se julgava merecedora. Acontece que Liz Reis, nascida homem que se reconhece mulher, não apresenta traços marcantes femininos perceptíveis e, até então, não havia comparecido a nenhuma aula daquela disciplina. A professora nunca estivera com ela antes. No máximo, a considerou um homem homossexual, para quem o inocente vocábulo “chateado” se encaixaria. A birra desdobrou-se no dia seguinte, com a aluna orquestrando uma manifestação contra a educadora na universidade e a acusando de transfobia e racismo, culminando com um abaixo-assinado exigindo a demissão da docente. A treta, porém, fora gravada, e o que sobressai é a cólera e o desplante da aluna e o acuamento da mestra perplexa e amedrontada. No vídeo, nada insinua desrespeito da professora com a aluna; ao contrário.

Em país miseravelmente preconceituoso, esse assunto reveste-se de escrúpulos, pois parece óbvio que qualquer pessoa trans suporta discriminações e dores inimagináveis e inconcebíveis para simplesmente se ser o que é. O repúdio e a hostilidade da maioria da sociedade se estendem, como norma, a todas as “minorias”, que sofrem agressões, abertas ou veladas, rotineiramente. Não há como aquilatar a cota desse sofrimento. Várias das reações dos identitários radicais, contudo, transbordam a racionalidade, reproduzem violência análoga e se configuram improdutivas para as próprias causas, amplificando o público hostil. A cultura do cancelamento afigura-se tão abjeta quanto o sectarismo prevalente que vitimiza as minorias. A cultura do cancelamento equivale-se a uma bestialidade semelhante ao macartismo. Não é nova – o falecido Wilson Simonal que o diga -, e se potencializou pelo jacobinismo identitário. Ademais, na modelagem vigente, goste ou não a esquerda, ela carrega o seu DNA.

Uns poucos intelectuais públicos de esquerda têm se dedicado a escrutinar os excessos das seitas identitárias. Na última quarta-feira, os afiados Wilson Gomes, Francisco Bosco e Pablo Ortellado assinaram artigos na Folha de S. Paulo e em O Globo – jornais simpáticos aos identitários – abordando o caso da universidade baiana. Bosco e Ortellado o fizeram a quatro mãos para O Globo. O texto da dupla anota: “Essa iniciativa é amparada por uma premissa iliberal, entranhada hoje nos setores progressistas, segundo a qual quaisquer acusações por parte de integrantes de minorias devem ser imediatamente transformadas em condenações morais”. E os autores acrescentam: “A sociedade brasileira está numa encruzilhada cultural. Indivíduos e instituições compromissados com o aprofundamento de nossa democracia devem recusar os caminhos da demagogia, das dinâmicas de grupo e do tribalismo. É questionável que esses caminhos levem à democratização, mas é certo que levam à degradação do convívio e servem como justificativa à reação daqueles que resistem a uma sociedade mais inclusiva”. Também professor na UFBA, em seu escrito na Folha, Wilson Gomes aponta: “Um dos lugares mais insanos para se trabalhar hoje são as universidades. Ao menor interesse contrariado, à menor reivindicação de hierarquia pedagógica, à mera indicação de bibliografia pode corresponder uma acusação de gravíssimo crime identitário. Crime hediondo, sentença automaticamente cumprida. Nem Kafka previu coisa assim”. E adverte: “Apesar da gravação, a militância identitária corre às ruas e às redes para fazer exatamente o que fazia o bolsonarismo: continuar a difamar a docente e a universidade e a destilar o seu ressentimento contra a instituição. Troque doutrinação ideológica por doutrinação patriarcal e colonialista, e ideologia de gênero por ideologia da heteronormatividade ou da cisnormatividade, e veremos o identitário radical usar a mesma matriz acusatória do bolsonarismo”. Em suas redes, o baiano Antonio Risério, o intelectual brasileiro mais combativo em relação aos identitários, registrou: “Durante esses anos, duas coisas pelo menos me impressionaram e ainda me impressionam: a complacência da esquerda, aceitando todos os absurdos arbitrários e autoritários dos autodeclarados representantes de ‘minorias oprimidas’, e a covardia das autoridades universitárias diante dessa onda fascista”.

Como assinalaram Francisco Bosco e Pablo Ortellado, os despropósitos dos identitários apenas fortalecem aqueles “que resistem a uma sociedade mais inclusiva” e a já musculosa e arcaica direita auriverde. Espera-se que o presidente Lula não contribua para o robustecimento conservador, ao indicar, em breve, quem sucederá a ministra Rosa Weber na disputadíssima vaga no Supremo Tribunal Federal. Não tenho pretendente a sugerir, todavia, dos nomes especulados, considero o evangélico e advogado-geral da União, Jorge Messias, como a escolha menos adequada no momento, malgrado os seus possíveis méritos. Bolsonaro infiltrou na Corte dois escudeiros das demandas mais regressistas. Ao que tudo indica, os pareceres iniciais de Cristiano Zanin não contrapuseram essa tendência e explicaram os empenhos de Nunes Marques, André Mendonça e do pastor Silas Malafaia a seu favor. Encrustar mais um jovem evangélico no Supremo, que lá ficaria cerca de três décadas, evidencia erro estratégico imenso, pois avigoraria a bancada retrógrada. Por mais afinidade que Jorge Messias tenha com Lula, ele é, sobretudo, evangélico, permeado por preceitos anacrônicos. E Lula passará. Não que o STF ostente ala progressista, entretanto carece evitar a estabilização de um bloco fundamentalista. Na verdade, o ideal seria a limitação de tempo dos mandatos, para impedir exercícios por mais de dez anos na Casa.

Que ninguém se iluda: o país é amplamente conservador. Há de se respeitar a maioria e assegurar os inúmeros progressos conquistados nos terrenos dos costumes e da democracia. As diatribes e guilhotinas identitárias em nada contribuem para os esforços dos avanços civilizatórios.

Hudson Carvalho é jornalista e consultor político
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