sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

MARIGHELLA, O GUERRILHEIRO E O CAPITÃO NASCIMENTO * Solange Cavalcante

  MARIGHELLA, O GUERRILHEIRO E O CAPITÃO NASCIMENTO

Solange Cavalcante

O filme Marighella ou como ajustar a História ao gosto neoliberal e palatável. 

Com Marighella finalmente lançado, Wagner Moura tem peregrinado pela imprensa especializada, relatando o boicote que seu filme sofre desde o malfadado lançamento, em 2019. Mas se Moura não mente, porque o clima no Brasil é mesmo fascista, o diretor não é totalmente honesto. Basta um mínimo conhecimento sobre a biografia do revolucionário baiano e o contexto em que ele viveu para perceber que Moura censurou seu próprio filme e a História, a fim de permanecer “bem na fita” com quem manda na indústria cultural, na indústria do entretenimento e com quem sempre deu as cartas, no Brasil.

Moura criou um Marighella solitário e acuado, diferente do deputado federal e revolucionário culto, carismático e estimado no meio político, cercado de amigos, apoiadores, intelectuais e estudantes – mesmo que esse apoio não pudesse ser ostensivo. 

No filme há a completa ausência de manifestações, de confrontos, da fala e da presença do povo (do campo e das cidades), contrário ou a favor da ditadura militar. Os militares são invisíveis – seus nomes, patentes, crimes e responsabilidade histórica não são explicitamente descritos.  Fosse um filme felliniano, os militares seriam sonhos incompreensíveis. Mas Moura não é Fellini. 

Em Marighella, a ambientação é, na maior parte, fechada e com pouca luz. Isso pode ser mais do mesmo da pobreza da fotografia do cinema brasileiro. Esse poderia ser um recurso para indicar a claustrofobia do contexto, mas parece mais que Moura se iludiu ou quis iludir o público, querendo contar essa história em poucas pinceladas intimistas.

Como roteiristas, Wagner Moura e Felipe Braga são típicos filhos da escola Globo de roteiros, sem a menor inspiração ou curiosidade pelos textos geniais de Elio Petri e Ugo Pirro, por exemplo, quando se trata de filmes políticos. Os roteiristas nacionais, todos da mesma escola, vivem de diluir grandes personagens como Marighella, misturando-as a tramas fictícias da vida privada, para criar apelo emocional e não o conhecimento dos fatos (vide a bobajada em torno das biografias de Pedro I e Pedro II, na tevê, e as biografias dos Joõesinhos Trinta e das Hebes Camargo, no cinema).  

Em Marighella, Moura e Braga apostaram no fio condutor do pai amoroso que ensina o filho a nadar, que faz promessas e que grava fitas de despedida – fato que nunca existiu. Eles acharam impossível traduzir em linguagem cinematográfica que querer justiça para todos já é amor. E sim, licenças poéticas são sempre permitidas. Mas furos propositais na História por preguiça, por economia, por comprometimento ou medo dos poderosos, não.

No filme há o apagamento de símbolos da luta revolucionária/da esquerda como a cor vermelha,  punhos fechados erguidos para o ar, da foice e do martelo, de fotos de Guevara, das falas e cenas originais dos inimigos e personalidades da época, da fantástica trilha sonora de músicas de protesto e de slogans escritos nos muros. O resultado é um Marighella desconectado da atmosfera do mundo que o cercava. 

Episódios dramáticos, como a  expulsão de Marighella do Partido Comunista, é reduzido a uma conversa a dois, na qual, por superficialidade ou economia, um partido inteiro é representado por um  jornalista inventado, um tal de Jorge Salles (Herson Capri). Esse recurso seria aceitável, se não fosse usado à exaustão no filme inteiro. Ele abusa dos personagens/tipo que representam multidões de outras pessoas.

No filme, A Ação Libertadora Nacional (ALN) é representada por cinco ou seis gatos pingados com cara de desequilibrados – aliás, quando é que os revolucionários da época foram descritos de forma diferente, na nossa indústria cultural, senão como personagens inventados, sem sobrenome, sem história, sem empatia e com índole sociopata? Não fosse assim, qual a razão do tal Almir não ser chamado pelo nome justo do jornalista, tradutor e revolucionário JOAQUIM CÂMARA FERREIRA? Ele teria sido uma figura execrável? A família não permite que ele seja citado? Ou o diretor do filme se autocensurou (antes mesmo que Bolsonaro o fizesse) para não ficar mal com os produtores/patrocinadores?

Por que o delegado torturador do DOPS, com nome e sobrenome SERGIO FERNANDO PARANHOS FLEURY, pago pela burguesia de São Paulo (com nome e sobrenome) para desaparecer com presos políticos e criminosos comuns através dos esquadrões da morte, aparece como delegado Lucio? Lucio de quê? Lucio a mando de quem, entre os militares (com nome e sobrenome, como EMILIO GARRASTAZU MEDICI)? Fleury, aliás, tornou-se tão íntimo dos ditadores que, cada vez que era citado num processo por abuso de poder, arrolava oficiais das três armas para testemunharem a seu favor. Todos com nome e sobrenome. 

Quando, por exemplo, do sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick, em 1969, a ALN condicionou sua soltura à leitura integral de um manifesto nos jornais, nas rádios e na tevê. Foi CID MOREIRA (com nome e sobrenome) quem leu o manifesto. Na Rede Globo. No Jornal Nacional. No filme, o manifesto é lido por um apresentador sem nome, numa rede chamara TV J. Poderia ser uma tevê X ou tevê Z. Sem nome. 

E por que não nomear os frades dominicanos FERNANDO DE BRITO E YVES DO AMARAL LEBAUSPIN, que Fleury torturou e usou para atrair e matar Marighella? Qual foi o crime deles, segundo Moura, para seus nomes serem evitados? Seria o crime de “beijoqueiros da traição”, de “covardes”, de “infelizes” e de terem entregue Marighella com “tática meticulosa”, como escreveu Roberto Marinho, no editorial de O Globo chamado “O beijo de Judas”? O nome Marinho, aliás, passa longe da narrativa. Então: quem é que censura o filme de Wagner Moura?

Clara Charf era quadro de partido e feminista atuante. Não é nem nunca foi uma dona de casa chorosa. As três aparições da personagem, no filme, não fazem justiça a ela. A presença de Adriana Esteves, do casting da Globo, é um recurso comum no cinema brasileiro, para “levantar” o filme. Presenças VIP como a dela e de Bruno Gagliasso importam mais do que contar a história verdadeira. É a velha guerra entre forma e conteúdo, e aqui Wagner Moura escolhe o lado em que sua produção quer estar. 

Antes de publicar receitas de bolo entre os textos de seus jornais por causa da censura, os grupos Estado e Folha de S. Paulo bem que apoiaram o golpe militar. É provado que a Folha emprestava seus  caminhões para a desova dos cadáveres de presos políticos. E adivinhem. Nenhum deles é mencionado, no filme Marighella. 

Carente de bom texto (nada de análise de conjuntura, filosofia política, citação de autores ou de intelectuais importantes, Marx, nada), as cenas de tortura tornam-se, então, a solução fácil do diretor, quase como o ápice da produção – e por isso totalmente dispensáveis. Amigo, se você dispensou todo o resto, não venha com o recurso da truculência. 

No final, tudo pode piorar. Aquele grupinho de desequilibrados sociopatas volta do nada (como se o diretor se lembrasse que podia usar Fellini como referência, na questão dos sonhos) e se mete a gritar e pular, cantando o hino nacional. Não é Bella Ciao nem A Internacional Socialista – é o hino nacional. Eu digo que em mais de quarenta anos de militância, nem eu nem os companheiros todos nunca nos vimos minimamente inclinados a cantar o hino nacional. Quem cria essa sequência, num filme, não sabe nada de nós.

E aí finalmente compreendemos porque Mano Brown abandonou a produção e o papel de protagonista – é porque a história que Moura escolheu contar é constrangedora. Eu também abandonaria.

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Aqui Solange continua:

Mais do mesmo, mas não importa. 

Ainda sobre o tema Carlos Marighella, eu o conheci de forma mais detida quando escrevi meu "Compagni di Stadio", sobre a Democracia Corinthiana. O que Marighella tem a ver com a Democracia Corinthiana passa pela ditadura militar, obviamente. E passa, também, por como minha geração enfrentou aqueles tempos ruins na periferia de São Paulo, de dentro das escolas públicas propositalmente sucateadas e de dentro das casas tristes, ao gosto da soja do bandido do Paulo Maluf e com o cheiro forte de querosene, quando o gás acabava. 


Vivemos aquilo tudo meio alienados, sofrendo com a miséria de títulos do Corinthians. Em tudo quanto era boteco e armazém tinha o cartazinho manjado: “Fiado, só quando o Corinthians for campeão”. Uma vez ganhei uma camisetinha pobre do time porque minha mãe sempre achou de economizar tempo e dinheiro me vestindo igual a meus irmãos. Os professores me martirizavam: “Time de preto, pobre e maloqueiro, menina. Que coisa feia”. 


A coisa foi se acertando, para o Corinthians, com o Paulista de 1977. Mas precisou esperar que Vladimir, Casagrande e Sócrates fundassem nossa fodidíssima Democracia Corinthiana – e essa foi, para nós, como o maio de 1968, em Paris. Foi como nosso Woodstock. Foi como nossa marcha pacifista, em San Francisco. Foi nossa epifania.


Em 2012, enquanto eu escrevia sobre o momento pré-socrático da Democracia, minha narrativa encontrou o companheiro Carlos Marighella. Em todo o material que pesquisei, havia fatos, nomes e sobrenomes inequívocos. E aqui tenho que voltar à crítica que faço ao filme "Marighella", de Wagner Moura, que não dá nome aos criminosos públicos e notórios que atuaram na porra toda que foi o golpe e a ditadura empresarial-militar de 1964: Mercedes-Benz, Volkswagen, Siemens, Mannesman, Esso, Globo, grupo Folha, grupo Estado, clubes de futebol como Botafogo, São Paulo F. C. e o próprio Corinthians, seus presidentes e conselheiros, militares com patente, ricalhada paulista com nome de bandeirante etc., etc.


Me pergunto com que coragem Moura omite o nome do delegado Sérgio Fleury, torturador e assassino comprometido com a burguesada paulista e aquela corja de milicos. É como erguer de novo e de novo uma estátua para Borba Gato e sua política de extermínio do povo indígena. É o mesmo apagamento que fez com que o policial Porquinho, que esquartejava os mortos políticos e jogava os pedaços dos corpos pela cidade, a mando de Fleury, tivesse seu nome transformado na rua Doutor Alcides Bueno Filho, na Zona Norte de São Paulo. 


Para acabar com Marighella, Fleury conseguiu carta branca do general-presidente Medici para uma caçada que começou com a prisão de alguns frades dominicanos, amigos do guerrilheiro – entre os quais Frei Betto e Tito Alencar. 


Frei Tito foi torturado pessoalmente por Fleury. Vestindo batina, o delegado exigia que Tito beijasse sua mão e o chamasse de Papa. Dois outros frades, Fernando de Brito e Ivo Lesbupin, também foram torturados. Fernando e Ivo foram obrigados a marcar um encontro com Carlos. Na noite de 4 de novembro de 1969,  o guerrilheiro compareceu ao local marcado. Dentro do Fusca estacionado, Carlos reconheceu o vulto dos amigos e se aproximou. Não podia suspeitar que 40 policiais civis, sob as ordens de Fleury, começariam a atirar. 


Naquele mesmo momento, noventa mil torcedores estavam no estádio do Pacaembu para assistir ao clássico Corinthians e Santos. O Corinthians estava ganhando com o surpreendente resultado de 4 x 1 graças a Roberto Rivellino, muito mais inspirado que Pelé. 


O jornalista Juca Kfouri estava presente no estádio. Ele me contou que, antes do final da partida, uma voz metálica fez um anúncio pelo sistema de alto-falantes:  “A Secretaria de Segurança Pública do Estado informa que o terrorista Carlos Marighella acaba de ser morto num confronto com a polícia civil”. Segundo Juca, naquele momento os torcedores explodiram num grito histérico de alegria, como num grito de gol. 


Juca ficou trêmulo. Em São Paulo, Marighella era corinthiano. Estivesse livre de compromissos políticos, naquela noite, Marighella também teria ido ao Pacaembu, para torcer. Disfarçado, provavelmente. Mas ele teria ido. 


Em luta contra a ditadura, Juca se ocupava de providenciar documentos falsos para que os companheiros pudessem escapar da perseguição política. Morto Marighella, ele sabia que muitos seriam as próximas vítimas do terror, inclusive ele. O jornalista saiu do estádio antes que o jogo acabasse – com medo, confuso e arrasado. 


Ainda bem que ele sobreviveu para me contar: “A Democracia Corinthiana não é uma história de futebol, Solange. O futebol é só um detalhe. Essa é a história de uma revolução”. E eu acredito muito nisso.

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