domingo, 5 de março de 2023

CELAC E A INTEGRAÇÃO PENDENTE NA AMÉRICA LATINA * Arantxa Tirado Sánchez /Lamarea

CELAC E A INTEGRAÇÃO PENDENTE NA AMÉRICA LATINA


Arantxa Tirado Sánchez / www.lamarea.com


O problema que levou à paralisação da CELAC não foi a presença de lideranças de esquerda com discursos ideológicos, mas o boicote ativo a uma nova direita regional que rompeu o consenso mínimo baseado na defesa das respectivas soberanias e autodeterminação dos povos.

Na última terça-feira, 24 de janeiro, foi realizada em Buenos Aires a VII Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Este é um evento cuja importância é desconhecida na Espanha, embora a criação deste órgão tenha sido a principal iniciativa para lançar as bases de uma integração soberana de todos os países da América Latina e do Caribe desde a época da Independência. Não surpreendentemente, a apresentação da CELAC foi realizada em dezembro de 2011 em Caracas, coincidindo com a celebração do Bicentenário da Independência da Venezuela. Hugo Chávez foi o anfitrião de um evento que representou a continuidade histórica das frustradas tentativas de união no século XIX e uma virada, também geopolítica, no continente.

A CELAC em 2011 foi a cristalização de um momento brilhante na história dos países da América Latina e do Caribe. As lutas dos povos contra o neoliberalismo nas décadas anteriores abriram caminho para que uma série de lideranças de uma esquerda plural chegassem ao governo. A Venezuela de Hugo Chávez desempenhou um papel de destaque liderando um bloco de poder contra-hegemônico no sistema internacional pós-Guerra Fria. Por meio de uma política externa estrategicamente atuante, Chávez conseguiu ampliar e diversificar as relações de seu país com o mundo e tentou concretizar o ideal da integração latino-americana-caribenha pensando, junto com Fidel Castro, em criar diversas organizações que servissem para materializar as ideias de Simón Bolívar sobre a união da Grande Pátria. A CELAC foi uma delas, talvez a principal, pela participação de todos e cada um dos 33 Estados que compõem a América Latina e o Caribe, apesar de suas sempre presentes diferenças ideológicas. Assim, a CELAC fez da "unidade na diversidade" o seu lema.

Mas antes da CELAC houve outras iniciativas que formaram uma geopolítica alternativa à americana. Em 2004, foi criada a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América-Tratado de Comércio dos Povos (ALBA-TCP), uma proposta venezuelana-cubana à qual gradualmente aderiram os aliados estratégicos de ambos os países. Também a partir desse ano foi criada a Comunidade Sul-Americana de Nações, germe do que em 2008 se tornou a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), outro órgão de coordenação política sub-regional que se atribui ao impulso de Lula da Silva em seu primeiro mandato. A Venezuela logo se preparou para assumir um papel ativo no âmbito da UNASUL, colocando seu petróleo a serviço da cooperação energética entre os países da América do Sul.

A VII Cúpula da CELAC tem recebido pouca atenção da mídia fora da América Latina e Caribe, o que torna esta organização uma grande incógnita, além das pessoas que acompanham as notícias desses processos políticos regionais. Claro, quase ninguém na imprensa espanhola -nem mesmo na academia especializada em relações internacionais que se realiza na Europa, nos Estados Unidos ou, inclusive, em suas réplicas latino-americanas- lhe falará sobre esses eventos, colocando a Venezuela como o motor da integração e, até, o artífice dos necessários acordos políticos do momento entre forças ideologicamente díspares. Não é de estranhar, pois reconhecer que a Cuba de Castro ou a Venezuela chavista contribuíram com algo de positivo para todo um continente é impossível para quem nem sequer assume que ambos os processos revolucionários possam ter trazido um benefício mínimo para seus respectivos povos. Sabemos que dizer coisas positivas sobre Cuba ou Venezuela é um anátema, fecha as portas na academia e na grande mídia, acusando quem ousar de ideologizar, senão o financiamento castro-chavista. Mas é paradoxal que as denúncias da ideologização daqueles que tentam explicar o mundo a partir de uma perspectiva contra-hegemônica impeçam aqueles que as proferem de observar a própria ideologia presente em sua defesa ferrenha da ordem econômica e geopolítica vigente.

Omitir o papel venezuelano nas tentativas de integração política regional não ajuda a compreender o que significou que um continente periférico no sistema internacional, com graves problemas de desigualdade e pobreza, e submetido a constantes instabilidades políticas, tentou formar um contraponto bloco de poder hegemônico bem no território que os EUA consideram seu quintal. Um bloco contra-hegemônico liderado, aliás, pelo país detentor das principais reservas comprovadas de petróleo do mundo, a Venezuela, com um presidente disposto a administrá-las segundo seus critérios soberanos.

Para avaliar a importância e o perigo das organizações criadas, basta ver como elas foram congeladas ou mesmo fechadas quando chegaram ao governo os direitistas de Lenín Moreno no Equador, Mauricio Macri na Argentina e Jair Bolsonaro no Brasil. Antes que esses presidentes decidissem dar as costas à CELAC e até mesmo abandonar sua participação na UNASUL, seus países também tentaram dar prioridade à Organização Pan-Americana dos Estados Americanos (OEA), bem como criar outras organizações paralelas que serviriam de um contrapeso ao que a direita interpretou como uma influência excessiva do “eixo bolivariano”.

Idéias semelhantes ouvimos nestes dias da boca do presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, que na última reunião da CELAC assumiu a ideia de uma integração entendida como mera abertura comercial, propondo a criação de uma área de livre comércio em todo o continente que lembra o fracassado projeto estadunidense da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Para Lacalle Pou, a CELAC não poderá sobreviver se a esquerda considerar que esta organização é o seu “clube de amigos ideológicos”. O presidente uruguaio, em última análise, pede para baixar o tom político, chamando o fato de considerar a integração latino-americana-caribenha um processo eminentemente político, e não técnico, de “tentação ideológica”.

Mas a CELAC, que tem mecanismos de diálogo e cooperação direta com a China ou a União Européia, conseguiu funcionar de forma harmoniosa mesmo com a presença de presidentes tão ou mais ideologizados quanto os que agora participam dessas cúpulas. O problema que levou à paralisação da CELAC não foi a presença de lideranças de esquerda com discursos ideológicos, mas o boicote ativo a uma nova direita regional que rompeu o consenso mínimo baseado na defesa das respectivas soberanias e autodeterminação dos povos.

Nesse sentido, o novo momento político que atravessa a região, com maioria de lideranças de esquerda, alguns deles pela primeira vez em décadas, como é o caso de Gustavo Petro na Colômbia, é auspicioso para a retomada do antigo e adiado projeto de integração. O presidente Da Silva anunciou outro dia em Buenos Aires, de fato, que a UNASUL também vai ser reativada. Mas hoje na América Latina, o atual presidente do país que foi o promotor da CELAC, Nicolás Maduro, não pôde comparecer à VII Cúpula por pressão da extrema direita. A correlação de forças regional não é a mesma para as ideias bolivarianas, que encontram relutância inclusive entre alguns presidentes progressistas, como o chileno Gabriel Boric.
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ÁLVARO GARCIA LINERA
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