terça-feira, 13 de junho de 2023

BURKINA FASO DE THOMAS SANKARA * Emerson Xavier - PE.BR

BURKINA FASO DE THOMAS SANKARA

Burkina Faso é um país do oeste africano sem saída para o mar, tendo fronteiras com Mali, Togo, Benin, Niger, Gana e Costa do Marfim. Este último país porta ainda vergonhosamente um nome que reverbera o eco das violências coloniais e neocoloniais, bem como Alto Volta, nome que os colonialistas haviam atribuído àquele que veio a ser renomeado “País dos Homens Íntegros”. Com efeito, Burkina significa “homem íntegro, independente” em língua mooré, falada pelo povo Mossi; Faso significa “casa do pai”, ou seja, “pátria”, em língua diúla. Seus filhos são os “burkinabè”, neologismo obtido pela junção do sufixo “bè”, “filhos de”, em língua fulfulde, falada pelo povo Peul.


Esta mudança tão significativa deveu-se à vontade amorosa do revolucionário panafricanista e marxista Thomas Isidore Noël Sankara, primeiro presidente do Burkina-Faso após a revolução popular de 1983.

Thomas Sankara, não por acaso identificado como o “Guevara africano”, nasceu em 1949 na aldeia de Sitoega, departamento de Bokin, província de Passoré. Seu pai, um enfermeiro militar, era da etnia Peul e sua mãe de etnia Mossi. Sankara não viveu a grande miséria na qual estavam mergulhados seus compatriotas, teve acesso à educação formal e se encaminhou a uma carreira militar. Após uma formação inicial ao oficialato numa academia militar da República dos Camarões, Sankara estudou ciências políticas, economia política, língua francesa e agronomia na Academia Militar de Antsirabe, em Madagascar. Por sua sólida formação, em 1976, Sankara foi nomeado comandante do CNEC, Centro nacional de Treinamento e Comando, situado em Pô, província de Nahouri. Naquele mesmo ano, ele seria enviado ao Marrocos para mais um estágio de formação militar, período em que Sankara estreitaria laços com seu camarada de armas Blaise Campaoré, e também com Henri Zongo, Boukary Kabore e Jean-Baptiste Boukary Lingani, com os quais ele criaria o Agrupamento dos Oficiais Comunistas.

A pequena burguesia do país, da qual fazia parte Thomas Sankara, não se identificava com a elite política dominante, marcada por escândalos financeiros. Em 1981, um golpe de Estado com apoio popular leva ao poder o coronel Saye Zerbo. Sankara é nomeado secretário de Estado para a Informação, cargo ao qual ele renunciará em protesto contra a supressão do direito de greve. Sankara será então perseguido pelo efêmero regime, substituído em 1982 após o golpe de Estado escabeçado por Jean-Baptiste Ouédraogo. Em 1983, Sankara é nomeado primeiro ministro do Conselho de Salvação do Povo. Sua gestão é claramente anti-imperialista. Sankara estreita laços com Cuba e com líderes progressistas africanos, denuncia a relação neocolonial da ainda República do Alto Volta com a França e afirma que “enterrará o neocolonialismo”. Sob pressão da França, o nome regime não apenas demitirá Thomas Sankara, mas também o submeterá a um regime de prisão domiciliar.

Manifestações de massa lideradas por partidos políticos de esquerda exigem sua libertação. Em 4 de agosto de 1983, nova rebelião militar com vasto apoio popular leva ao poder Thomas Sankara, que formará novo governo apoiado no Partido Africano da Independência e na União das Lutas Comunistas – Reconstruída. Sem perda de tempo, Sankara declara ter como objetivos “recusar o estado de sobrevivência, aliviar as pressões, libertar o campo do imobilismo medieval, democratizar nossa sociedade, abrir mentes a um universo de responsabilidade coletiva para ousar reinventar o futuro, reconstruir a administração a partir de uma nova imagem do funcionário público, mergulhar o exército no povo através de um trabalho produtivo e lembrar que, sem formação patriótica, um militar nada mais é que um criminoso potencial”

No dia 4 de agosto de 1983, sob sua liderança, a República do Alto Volta é renomeada Burkina Faso.

Inspirado no poder popular cubano, Sankara estimula a criação de CDRs, Comitês de Defesa da Revolução, os quais passam a ter importante papel na cadeia produtiva e comercial. O governo revolucionário passou a recusar a ajuda alimentar, suspendeu a importação de frutas e se apoiou no conhecimento ancestral das mulheres camponesas para enfrentar o problema da falta d’água, da fome e da desnutrição. Em apenas 3 anos, o Burkina Faso, um país saeliano, chegou à autossuficiência alimentar, conforme o reconheceu em 1986 o relator especial das Organização das Nações Unidas.

Thomas Sankara abraçou todas as causas dos povos oprimidos em todos os continentes. Foi também um ecologista e um feminista revolucionário, não apenas no discurso, mas em atos concretos, cujos impactos sociais e econômicos logo se fizeram palpáveis.

Em suas próprias palavras:

“Não falo apenas em nome do Burkina-Faso, mas igualmente em nome daqueles que, de algum modo, sofrem. Falo em nome desses milhões de seres que estão nos guetos por terem a pele negra. Falo em nome das mulheres do mundo inteiro, que sofrem de um sistema de exploração. “Elas são dominadas por homens dominados, sendo assim duplamente dominadas”.

“A luta contra a desertificação é um combate eminentemente anti-imperialista, na medida em que sabemos que sob o imperialismo, a dominação dos homens é um ato perfeitamente normal, a fortiori, a exploração das florestas. “Toda ação econômica deve ter uma vertente ecológica.”

“Há quem pergunte onde está o imperialismo. Olhem seus pratos. Quando vocês comem grãos de milho, de painço importado, isso é o imperialismo. Nem precisa ir além para entender o que é o imperialismo.

“Só quero dizer que devemos viver como africanos, única maneira de sermos livres e dignos.”

Em nenhum momento, as forças da contrarrevolução deixaram de atuar. No plano interno, apoiando-se muitas vezes em agrupações políticas no espectro da esquerda, saudosistas do antigo regime clientelista de obediência neocolonial procuraram estimular descontentamento e rebelião. No plano externo, não só os países sob tutela neocolonial francesa tentaram ameaçar a soberania burkinabè, mas a própria França. Em seu livro A vitória dos Vencidos, o sociólogo suíço Jean Ziegler destaca a atuação nefasta de Guy Penne, encarregado de assuntos africanos na administração François Mitterrand e defensor do status quo neocolonial, estratégia macabra que finalmente foi adotada pelos governos franceses supostamente de esquerda. Penne orquestrou campanhas internacionais de difamação no intento de desestabilizar o Burkina Faso e seu presidente Thomas Sankara. Para quem conhece o papel direto de Paris no assassinato de diversos líderes africanos nos anos que se seguiram à mal chamada “descolonização”, foi legítimo supor que a França esteve implicada no golpe de Estado de 15 de outubro de 1987, quando o número dois da Revolução, o antigo camarada de armas desde os tempos no Marrocos, Blaise Campaoré enviou um comando para assassinar Thomas Sankara e instaurar o que o governo golpista chamaria de “processo de retificação da Revolução”. Doze outras pessoas foram assassinadas na mesma ocasião.

Tendo instaurado uma ditadura com apoio de todos os países que se reclamam da democracia e dos direitos humanos, Campaorè reverteu todas as conquistas da Revolução. O Burkina Faso voltou a ser apenas uma neocolônia, ecoando as vontades do imperialismo no plano internacional. A Revolução ecológica implementada por Sankara foi destruída: o Burkina Faso se tonou um vasto campo experimental de empresas transnacionais produtoras de transgênicos.

Tudo foi feito pelos golpistas para apagar dos espíritos da memória de Thomas Isidore Noël Sankara, a começar pela falsificação histórica de seu atestado de óbito...por morte natural!

Um punhado de militantes quixotescos, entre os quais Dr. Aziz Salmane Fall, fundador do GRILA (Grupo de pesquisa e de iniciativa para a libertação da África) senegalês radicado no Canadá, assumiu uma luta jurídica e política internacional para que essa calúnia não prosperasse, que as razões reais da morte de Sankara passassem a constar de seu certificado de óbito e que finalmente seus algozes fossem entregues à Justiça.

No dia 30 de outubro de 2014, após uma autêntica insurreição popular, o ditador assassino Blaise Campaoré foi deposto. Após mais de duas décadas de um combate que parecia inglório, o país dos homens íntegros retomou o fio de sua história. Finalmente, no dia 24 de março de 2015, a Justiça burkinabè anunciou a instrução de um processo pelo assassinato de Sankara e de seus doze camaradas. Fatos novos vieram elucidar ainda mais esse dossiê. Sabe-se agora oficialmente que a França estava a par de tudo o que vinha sendo tramado com Sankara. O processo avança a passos lentos, mas ele já constitui em si uma vitória para aqueles que nunca deixaram de acreditar que um dia a verdadeira Justiça poderia prevalecer.

Conhecer a história e o combate de Thomas Sankara é algo mais do que nunca necessário em nossa hodierna América Latina, cujo crescente combate contra o Imperialismo já nos permite vislumbrar dias de glória.

EMERSON XAVIER
JORNALISTA ESCRITOR TRADUTOR

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