quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Cresce a necessidade de integração soberana dos povos da América Latina e do Caribe * Javier Tolcachier/Rebelião

Cresce a necessidade de integração soberana dos povos da América Latina e do Caribe
Javier Tolcachier/Rebelião

Há 18 anos, em 5 de novembro de 2005, foi realizada em Mar del Plata a sessão de encerramento da IV Cúpula das Américas, que culminou com a recusa de avançar na implementação da ALCA, intenção promovida pelos Estados Unidos de América. .

A I Cúpula das Américas, realizada em Miami em dezembro de 1994, teve como objetivo principal a implementação do projeto de uma área de livre comércio que abrangesse todos os países do continente americano. Estas cimeiras, organizadas pela OEA, um dos principais braços executores das decisões da diplomacia dos EUA para a região, foram concebidas precisamente para alinhar a América Latina e as Caraíbas com os interesses da alegada hegemonia do Norte.

A função da ALCA era blindar a região para que as corporações norte-americanas tivessem facilidades e domínio em seus mercados, acesso aos recursos naturais nas suas condições, garantir a continuidade e o aprofundamento do processo de privatização e a região permanecesse ligada ao mercado financeiro. dependência dos Estados Unidos e sua moeda.

Contudo, na quarta cimeira, algo correu mal. Para os Estados Unidos – representados por George W. Bush (Jr.), principal responsável pelas invasões do Iraque e do Afeganistão – e dos seus parceiros do NAFTA (México e Canadá), juntamente com vozes como o Panamá e Trinidad e Tobago, a reunião deveria culminar com uma menção explícita à continuidade do projeto de livre comércio, questão que não constava da agenda previamente acordada.

E embora muitos dos participantes do conclave fossem seguidores do neoliberalismo, prevaleceu a resistência oferecida sobretudo pelo anfitrião Néstor Kirchner, pelo presidente do Brasil Lula da Silva, pelo uruguaio Tabaré Vázquez e pelo promotor da Revolução Bolivariana, Hugo Chávez Frías. A Declaração final confirmou a divisão de posições e as objeções apresentadas ao tratamento e resolução da questão, adiando-a e remetendo as negociações para as deliberações da Organização Mundial do Comércio, que acabaram por não prosperar.

O presidente da Venezuela expressaria então com a sua contundência característica: “O livre comércio não vai resolver a nossa pobreza. Quem ainda acredita nisso, esqueça essa história. Falemos das privatizações, um dos efeitos mais perversos da era neoliberal. Vejamos o caso de todos nós, as privatizações, o desemprego imediato, a flexibilização imediata das normas laborais, a eliminação dos benefícios sociais, os direitos dos trabalhadores foram apagados do mapa com as receitas do FMI. Reformas estruturais. Tóxico. “Verdadeiro veneno para as nossas economias.” (…)

Decisiva neste desfecho foi a mobilização popular que suscitou a campanha contra a ALCA, uma resistência que se construiu sobre o desastre social que as políticas neoliberais promovidas pelo chamado “Consenso de Washington” deixaram no seu rasto.

Paralelamente à cimeira interestatal, o povo animou a sua própria Contra-Cimeira em rejeição da proposta de anexação de Bush e companhia, que na sua Declaração Final conceptualizou claramente a evidência do desastre que o esquema neoliberal estava a trazer para a região: “Modelo que favorece poucos, que deteriora as condições de trabalho, aprofunda a migração, a destruição das comunidades indígenas, a deterioração do ambiente, a privatização da segurança social e da educação, a implementação de regulamentos que protegem os direitos das empresas e não dos cidadãos, como é o caso da propriedade intelectual.”

Dos participantes desse memorável conclave presidencial, três protagonistas atualmente chefiam novamente o governo de seus países: Lula no Brasil, Ralph Gonsalves em São Vicente e Granadinas e Roosevelt Skerrit na Dominica.

Muita água correria sob as pontes desde então. No calor de sucessivos governos progressistas e de esquerda, órgãos de integração soberana como a UNASUL, fundada em 2008, e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, que surgiria em 2010, surgiriam como um contrapeso à OEA.

Esta onda emancipatória seria seguida por um contragolpe reacionário que conseguiria suspender o avançado processo de institucionalização da UNASUL com a retirada de seis de seus membros todos governados pela direita a criação de monstros favoráveis ​​ao imperialismo como o Grupo de Lima e ProSur e num novo refluxo, a reconquista de governos com orientação integracionista, alcançando até triunfos em feudos anteriormente inexpugnáveis ​​de capitalismo convicto, como Chile, México, Colômbia, Honduras ou Peru.

A atual situação instável

Entretanto, a relação com a China aumentou fortemente, apoiando a região com boa parte do seu comércio externo, dos investimentos diretos, das suas fontes de financiamento e, mais recentemente, até da possibilidade de uma relativa emancipação do dólar.

Os temores americanos do aumento da expansão chinesa na América Latina e no Caribe indicados por Bush na Cúpula de Mar del Plata não eram infundados: De acordo com o Monitor Chinês do OFDI na América Latina e no Caribe 2023 (Dussel Peters, 2023), o relatório anual A média de investimento direto da China na ALC cresceu de 928 milhões de dólares anuais durante 2000-2004 para US$ 14.016 milhões durante 2015-2019.

Uma tendência que atualmente seria reforçada com a entrada da Argentina nos BRICS, a participação da região no projeto chinês de infraestrutura do Cinturão e Rota, a possibilidade de fortalecer o comércio em suas próprias moedas e a obtenção de créditos com menos condições para parte do Banco BRICS.

No entanto, a América Latina e as Caraíbas continuam sujeitas a uma matriz económica colonial dependente da exportação de matérias-primas com desvantagem nos termos de comércio, com mercados internos empobrecidos, com elevada evasão e elisão fiscais corporativas, o que por sua vez enfraquece os Estados que fazem propensos ao endividamento crónico.

A isso se soma a enorme desigualdade interna em termos de rendimentos e condições de desenvolvimento humano, que normalmente é escondida por números macro. Como se sabe, se estatisticamente duas pessoas comem meio frango cada, é muito provável que uma tenha comido a maior parte, enquanto a outra passa fome.

Nestas condições, o fantasma da ditadura de mercado continua a assombrar a região num ambiente político assediado por facções apoiadas, mais uma vez, pelo imperialismo na sua dura luta pela preeminência contra o multipolarismo já instalado.

Exatamente 200 anos depois de o então presidente dos EUA, James Monroe, ter anunciado a doutrina homônima – na verdade desenvolvida pelo seu secretário de Estado e sucessor John Quincy Adams -, abundam os exemplos da disputa entre neocolonialismo e emancipação: O bloqueio a Cuba continua, as medidas de cerco contra a Venezuela , desta vez com a lamentável colaboração da vizinha Guiana, as ameaças de derrubada de governos progressistas em Honduras e na Colômbia, a demonização do governo da Nicarágua, a manutenção do golpe no Peru e o intervencionismo no Haiti, o apoio a opções fascistas como a de Milei na Argentina e vários etc.

A isso se acrescenta que hoje as opções pós-neoliberais que corporizaram a “década vencida” na América Latina e no Caribe foram desgastadas pela perseguição midiática e judicial de seus líderes e também pela fraqueza de uma visão neodesenvolvimentista típica de o industrialismo do século passado, hoje mal envernizado com motivos digitais. Visão que, é preciso dizer com clareza, não obteve adesão suficiente nas novas gerações que cresceram em contextos de individualismo, de consumo extremo e apenas de utopias tecnológicas.

A Integração dos Povos

Para a rede de empresas multinacionais e fundos financeiros, a globalização significou e significa a possibilidade de operar nos mercados internacionais sem quaisquer limitações. É visível a relativa falta de poder real dos Estados face a estes monstros de acumulação insaciável. Acima de tudo, se for um arquipélago de Estados fragmentados com pouca capacidade de influenciar as decisões de governação global, em qualquer domínio.

Portanto, nesta perspectiva, é clara a necessidade de integrar capacidades e forças entre os diferentes países da região, a fim de contrariar de alguma forma a ação destrutiva das corporações.

No entanto, como proclamamos há anos, a integração regional deve contar com uma participação popular decisiva, sem a qual esta questão da sobrevivência e da melhoria das condições de vida fica simplesmente sujeita ao sinal do governo no poder, possivelmente corruptível pela pressão do poder corporativo e a hegemonia geopolítica e seus truques.

Esta participação deverá também tender a enraizar na consciência uma nova visão de proximidade e de fraternidade entre os povos que partilham a história e o futuro. Povos que hoje vivem separados por fronteiras fictícias, concebidos como feudos de burguesias nacionais em aliança com interesses neocolonialistas de exploração de recursos e de grupos humanos.

Num contexto mais amplo de globalização, entendida como um processo de crescente interligação entre povos e culturas, a aproximação, compreensão e troca de conhecimentos e virtudes culturais abre as portas à possibilidade de um novo tecido social internacional, baseado num profundo humanismo. O que confere à integração popular um carácter de utopia fundacional, muito além de uma simples soma de economias cunhadas em ideias de competição global.

A partir desta intuição, diferentes tentativas de integração e participação popular estão surgindo e crescendo na América Latina e no Caribe. Para estimular esses debates e avançar no fortalecimento do poder popular, uma diversidade de movimentos sociais, sindicais, indígenas, feministas, ambientalistas, comunicadores e personalidades políticas progressistas e de esquerda se reunirão em Foz do Iguaçú entre os dias 7 e 9 de dezembro, próximo na América Latina. Dia Americano da Integração dos Povos. Hito que tiene previsto abordar temas cruciales como la unidad en la diversidad de las organizaciones del campo popular, la imprescindible movilización, la actualización de visiones sobre la coyuntura, pero también anhela forjar consensos estratégicos para una hoja de ruta de luchas y tareas de mediano y longo prazo.

Pensar coletivamente os melhores caminhos para a integração participativa dos povos da América Latina e do Caribe é um propósito urgente e ao mesmo tempo transcendente. É desenhar imaginários que unam, tarefa épica e revolucionária em tempos de desintegração e ruptura de laços sociais e interpessoais.

(*) Javier Tolcachier é pesquisador do Centro Mundial de Estudos Humanistas, organização do Movimento Humanista e comunicador da agência internacional de notícias Pressenza.

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